“Vinho novo em odres novos”: juventude e religião
Tiago Luís Teixeira de Oliveira[1]
1. Religião como fato humano
A maioria dos antropólogos,
arqueólogos e historiadores atesta a importância da religião para a
constituição de nossa identidade como seres humanos. Mesmo biólogos darwinistas
procuram explicar a presença constante da fé em nossa história evolutiva[2].
As crenças religiosas são caracterizadas ao mesmo tempo por uma fé
compartilhada em um ou mais seres divinos e por um conjunto de orações, rituais,
cerimônias e regras praticadas para assegurar essa ligação[3]
com o sagrado. Assim, nada impede que alguém tenha fé (na humanidade, na
amizade, em um líder ou em Deus) e não seja uma pessoa religiosa, pois ou sua
fé não se ajusta à fé de um grupo religioso ou ela não se manifesta em práticas
rituais de uma religião. Consideramos aqui que os jovens e adolescentes têm, em
geral, bastante fé, embora muitos deles vejam com desconfiança o discurso
religioso. Que papel tem a religião para a formação e a vida de nossa
juventude? Podemos ensaiar algumas respostas nas linhas seguintes, que
dividiremos em tópicos:
1.1. A religião é um elemento cultural.
Dentre os vários elementos
componentes de uma cultura, um dos mais importantes é a religião. Quando
nascemos, não só nos tornamos membros de uma espécie biológica, mas também
somos introduzidos num modo de ser humano, que só é possível por causa da linguagem,
da educação, das crenças e valores transmitidos pela geração anterior. É como
se os mais velhos dissessem para os jovens como o mundo é. Esse mundo
transmitido, que é permeado pela linguagem e pelo símbolo é o que chamamos
cultura. A religião integra a cultura, a sustenta, dando significado sagrado à
história e aos acontecimentos. Muitas
dos momentos importantes da vida dos membros de uma cultura são transformados
em ritos de uma religião: nascimento, maturidade, casamento, morte são
celebrados com preces e ações simbólicas. Assim, uma das maneiras de introduzir
os novos seres humanos nesse mundo cultural é educá-los numa religião.
1.2. A religião propõe uma moral.
Além de integrar a cultura, as
diversas religiões propõem códigos de conduta com o que é aprovado ou reprovado
diante da divindade cultuada. Quando uma pessoa adere a uma religião, ela
também assume uma moral religiosa baseada nos textos sagrados de sua tradição.
De uma certa maneira qualquer religião dá por resolvida a questão filosófica
sobre a objetividade dos valores morais[4].
Para os religiosos os valores morais são absolutos e são expressos
objetivamente nos textos sagrados ou nos mandamentos oralmente revelados pelo líder
religioso. É inegável que nos tempos atuais, com inúmeros atrativos e a
permissividade da cultura contemporânea, um jovem pode se ver perdido quanto às
decisões que precisa tomar sobre o que é certo e o que é errado. Nesse sentido,
a religião parece ser um caminho seguro no meio de tanta insegurança.
Observamos muitos jovens extremamente zelosos de sua religião e adeptos de
vários preceitos morais indicados pelos líderes de sua religião. Muitos deles
assumem posturas na contramão de seus colegas secularizados, defendendo ideais
de compaixão e solidariedade, virgindade antes do casamento, uso de símbolos
que mostram sua identidade religiosa, adesão a grupos de oração ou cultos
voltados para pessoas de sua faixa etária, recusa do uso de bebidas alcoólicas
e de outros entorpecentes etc. Eles parecem ter mais convicção do que deve ou
não ser feito por causa de sua formação religiosa e não acreditam que os preceitos
morais dos textos sagrados possam estar errados ou ser apenas um produto de uma
cultura muito distante. Tais jovens recusam-se, muitas vezes, a julgar
criticamente as escrituras e os mandamentos de seu grupo religioso.
1.3. A religião tem um aspecto
existencial.
Sabemos que a adolescência e a
juventude são períodos de grandes escolhas. É o momento de definir uma
profissão, de decisões amorosas, de se submeter a exames tensos como
vestibulares e ENEM. É também momento de ganhar mais liberdade e de se
responsabilizar pelos próprios atos. Ora, todas as vezes que estamos diante de
grandes decisões, nos deparamos igualmente com a angústia, resultado da
indecisão e do medo de uma má escolha. Naturalmente surgem os questionamentos
existenciais: sobre o sentido da vida, destino, liberdade, responsabilidade
moral, sobre o papel que deve ocupar na sociedade, sobre a existência de Deus,
sobre a pertinência da própria religião. É um momento crítico, pois geralmente
é nessa fase que o jovem opta pelo ateísmo, pelo agnosticismo, por experimentar
outras tradições religiosas ou por confirmar-se na religião em que foi educado.
De qualquer modo, o jovem também encontra na própria religião modelos de
pessoas que suportaram tremendas dúvidas vocacionais e existenciais. É o caso
dos fundadores de religiões, dos profetas e santos. Na Bíblia, por exemplo,
encontramos o chamado dos profetas e dos apóstolos. Outro grande exemplo é São
Francisco de Assis, jovem que passou por grandes dúvidas, trocando o sonho de
ser cavaleiro pelo chamado a imitar o Jesus pobre da Bíblia. Todos esses
modelos acabam incentivando jovens e adolescentes a perseverar no caminho
religioso, superando ou assumindo a angústia cotidiana. Um aprofundamento na
formação religiosa e na vida espiritual pode também auxiliar a encontrar o
sentido da própria existência e responder corajosamente ao chamado à vida que
todos recebemos.
1.4. A religião sugere engajamento
político.
Mas se a religião ajuda a
compreender o que o mundo é e qual o seu sentido, ela também aparece como uma
instituição que afirma uma utopia, ou seja, o que o mundo deveria ser para
corresponder ao plano divino. No caso específico do cristianismo, tal utopia
foi nomeada por Jesus como “Reino de Deus”. Trata-se de uma realidade em que as
contradições sociais são minimizadas, os pobres recuperam a dignidade, os
doentes a saúde, os cativos a liberdade. Em suma, na utopia cristã os excluídos
são convidados a participar da abundância divina e os ricos a dividir o que
possuem. Não apenas uma mudança econômica, mas também uma mudança de
mentalidade é cultivada: a mentalidade de que todos são irmãos e possuem a
mesma dignidade de filhos de Deus. A utopia não é exclusividade cristã, pois
percebemos nos textos dos profetas da religião judaica a mesma denúncia: “a
verdadeira religião é cuidar do órfão e da viúva” pregava Isaías (cf. Isaías 1,
11-17) alguns séculos antes do surgimento do cristianismo. O respeito por todos
os seres vivos é um imperativo das religiões orientais. Ora, para que essa
utopia não seja uma idealização impossível[5]
é necessário fazer opções políticas. Neste sentido, adotar conscientemente uma
religião demanda engajamento na transformação da realidade excludente num mundo
mais fraterno. Alguns jovens são especialmente atraídos por essa dimensão da
religião, expressando sua fé por meio do apoio a movimentos que lutam por direitos
humanos, moradia, reforma agrária, erradicação do trabalho escravo, fim da
exploração de menores, fim da violência contra a mulher etc. Muitos desses
jovens seguem naturalmente para a política partidária.
2. Problemas para a renovação das
instituições religiosas
Embora possamos justificar a
importância da religião por meio dos elementos citados até agora, há uma série
de questões para as quais os nossos jovens são extremamente sensíveis muito
embora essas questões tenham sido negligenciadas pelos líderes religiosos e pessoas
que cuidam da formação de novos membros de uma religião. Essas questões, que
também trataremos em tópicos, dificultam a adesão plena de jovens mais
instruídos a um grupo religioso:
2.1. Pluralismo religioso
É um fato a existência de uma grande
quantidade de religiões e doutrinas. Até dentro de uma mesma religião há
diversas tendências bem diferentes entre si. Não tenho a menor intenção de
apontar esse pluralismo como um mal. Ao contrário, penso que a diversidade
religiosa seja um bem desejado por Deus mesmo[6].
Mas alguns problemas podem surgir dessa enorme pluralidade: há o problema de
saber de que Deus tratamos quando nos referimos a Ele (o Deus trinitário dos
cristãos, o Deus do Islamismo, do Judaísmo, das religiões afro, do
espiritismo?); há a divergência de doutrinas, de credo, de conduta (observar a
sexta, o sábado ou o domingo?). Essas diferenças não passam despercebidas dos
adolescentes e jovens e essa pluralidade, no lugar de ser entendida como uma
riqueza, pode ser entendida como sinal de falsidade do discurso religioso.
2.2. Moralismo
Um problema sério no discurso
religioso e com consequências desastrosas para a adesão de jovens, é o
moralismo. Há uma diferença grande entre moral e moralismo que podemos reconhecer
nas palavras do filósofo Comte-Sponville:
A moral responde à pergunta: ‘O que devo fazer?’. É o conjunto dos meus
deveres, em outras palavras, dos imperativos que reconheço legítimos – mesmo
que, às vezes, como todo o mundo, eu os viole. É a lei que imponho a mim mesmo,
ou que deveria me impor, independente do olhar do outro e de qualquer sanção ou
recompensa esperadas. ‘O que devo fazer?’ e não: ‘O que os outros devem
fazer?’. É o que distingue a moral do moralismo. [7]
A linha que separa a moral do
moralismo é justamente a de determinar a quem se aplicam as normas. A moral
supõe autonomia, já o moralismo é a tentativa de imposição externa de regras,
substituindo consciência moral dos outros. A juventude está sujeita a ouvir
discursos moralistas provindos de movimentos religiosos, determinando regras
absolutamente injustificadas ou convenientemente escolhidas dos textos
sagrados. O discurso religioso pode criar pessoas que agem por medo do inferno
ou em busca de recompensa eterna no lugar de pessoas que livremente decidem
agir bem. Líderes e fiéis mal formados
teologicamente podem assumir uma interpretação literal das escrituras de sua
tradição, esquecendo-se dos elementos culturais e contextuais presentes nas
normas morais prescritas. Ao invés de produzir a santidade, tais regras mal
interpretadas podem levar à barbárie. Muitas dessas regras são dirigidas apenas
ao comportamento sexual, o que gera sérios problemas afetivos aos mais
religiosos. A preocupação com a moral sexual chega a ocupar um lugar muito mais
destacado do que questões de justiça social, dando a impressão de que o pecado
está no próprio corpo e nunca numa situação de exclusão e marginalidade. Ao
mesmo tempo em que este moralismo abafa um profetismo em favor de um mundo mais
fraterno, cria jovens com medo da própria afetividade, que se odeiam por serem
homossexuais ou por não conseguirem evitar a masturbação (normal nessa faixa
etária) ou ainda manter a virgindade até o casamento. Aliás, algumas tradições
religiosas excluem de suas comunidades de fé as jovens grávidas solteiras e os casais
em segunda união, além de prometer cura para pessoas com tendências
homoafetivas. Não bastasse o moralismo, os grupos religiosos têm diversos
líderes envolvidos em escândalos envolvendo crimes como evasão de divisas,
pedofilia, disputas de poder e atitudes contrárias ao propagado como ideal de
todos os fiéis. Obviamente tal incoerência é mais um fator de afastamento dos
adolescentes e jovens das fileiras religiosas.
2.3. Resistência a mudanças
Por último, temos uma característica
das religiões que pode tornar difícil a chegada de novos membros: o
tradicionalismo. Uma religião é geralmente fundada por um líder carismático,
num espírito de muita liberdade e amor. Mas inevitavelmente a novidade que tal religião
inaugura é institucionalizada, o líder morre e os seguidores divergem sobre
como conduzir a nova fé. Rapidamente o Espírito é engessado em dogmas e
rituais. Religiões mais antigas sofrem especialmente com todo o peso da
tradição que se estabeleceu nos séculos que se sucederam à fundação. Os fiéis
muitas vezes são vítimas desse tradicionalismo, que impede meios mais modernos
e democráticos de participação. A Igreja Católica, por exemplo, embasa-se
exclusivamente na tradição para negar o ministério sacerdotal a mulheres e a
homens casados, preferindo apegar-se ao modo como os ministros são escolhidos
desde há muitos séculos do que garantir uma maior assistência espiritual aos
fiéis.
3. Considerações finais
Podemos constatar que as religiões
têm diversos aspectos positivos que podem tornar-se atraentes para as novas
gerações. Uma boa formação teológica pode contornar as confusões provenientes
do pluralismo religioso citado em 2.1. No entanto, os pontos 2.2 e 2.3
constituem empecilhos para uma maior participação e engajamento da juventude.
Ao tratar das relações entre juventude e religião, temos, na verdade um
paradoxo: 1) As religiões dependem das novas gerações para continuarem
existindo com suas tradições e 2) Novas gerações implicam mudanças de
mentalidade e de práticas. Isso significa que para garantir maior participação
da juventude nos grupos religiosos, é preciso conciliar a necessidade de
renovação e a necessidade de conservação. A geração mais jovem quer e deve
participar de sua religião, mas negar a tal geração a possibilidade de mudar e
trazer novidades para sua tradição religiosa é o mesmo que dizer aos jovens:
“vocês não são necessários”. Por outro lado, a identidade de uma tradição
religiosa foi construída pela conservação de certos elementos indispensáveis
(ritos, dogmas, história) e mudá-los drasticamente pode significar
descaracterização. O desafio, portanto, é renovar sem perder a identidade, algo
que a filósofa judia Hannah Arendt já mencionava sobre a tensão entre amar o
mundo e amar os jovens:
A educação é o
ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a
responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria
inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação
é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não
expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco
arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e
imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa
de renovar um mundo comum. [8]
Devolvemos duas perguntas aos líderes religiosos: amamos suficientemente nossa religião para permitir sua renovação através dos jovens? Amamos suficientemente os jovens para educá-los teologicamente e permitir que tragam o novo do qual são anunciadores, sem excluí-los de nossa religião? O desafio aqui é encontrar odres novos para conter o vinho novo[9].
[1] Doutorando em filosofia pela
UFMG e professor de filosofia do Colégio Santo Antônio. O presente artigo foi publicado no Boletim Amigos de São Francisco, n. 98. Março/2013.
[2] Um dos vários exemplos de
cientistas que entendem a religiosidade como um aspecto evolutivo é o do
geneticista Robert Winston: “Há evidências claras de que, enquanto a afiliação
religiosa pode estar mudando na sociedade humana moderna, a crença no
espiritual continua e mostra pouco declínio. Levando em conta o fato de que
vivemos em uma sociedade baseada no comportamento racional (...), pode parecer
surpreendente, a princípio, que tanta gente ainda professe sua fé em Deus. Por
que uma crença aparentemente irracional continua intacta? Uma solução possível
e provável é que a religiosidade - e,
portanto, a religião – deu ao Homo
sapiens uma vantagem evolucionista. Há também alguma evidência de que a
religiosidade (...) pode ser herdada.” (WINSTON, Robert. Instinto humano. Trad. Mário M Ribeiro e Sheila Mazzolenis. São
Paulo: Globo, 2006 pp-397-8). .
[3] A palavra religião tem origem
possível na palavra latina religare,
cuja tradução mais comum é ligar com ou ligar novamente.
[4] Trata-se de saber se existem
valores morais absolutos ou se todos os valores são relativos à cultura ou ao
momento histórico em que surgiram.
[5] Etimologicamente “Utopia”
significa lugar que não existe.
[6] Esse é o posicionamento do teólogo
e filósofo da religião John Rick, falecido no ano passado. Hick sugere que as
religiões são modos humanos de referir-se a uma realidade transcendente ou,
simplesmente “O Real”. O transcendente, como o próprio nome indica, está fora
de nossa capacidade de conceituação e, por isso mesmo, várias tradições
religiosas são fundadas para manifestar histórica, humana e limitadamente a
realidade sagrada. Seria o caso de pensar seriamente se Deus criaria todos os
seres para manifestar-se apenas a um grupo religioso privilegiado, privando
todo o restante da humanidade de um relacionamento com Ele. Por essa razão Hick
pensa que o pluralismo é querido por Deus. Cf. HICK, John. A metáfora
do Deus encarnado. Petrópolis: Vozes, 2000.
[7] Comte-Sponville,
André. Apresentação da filosofia. São
Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 20.
[8] ARENDT, Hannah. Entre
o Passado e o Futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000, p.247.
9 A passagem bíblica é bem
ilustrativa da situação a que aludimos: Então
os discípulos de João se aproximaram de Jesus, e perguntaram: «Nós e os
fariseus fazemos jejum. Por que os teus discípulos não fazem jejum?» Jesus
respondeu: «Vocês acham que os convidados de um casamento podem estar de luto,
enquanto o noivo está com eles? Mas chegarão dias em que o noivo será tirado do
meio deles. Aí então eles vão jejuar. Ninguém põe remendo de pano novo em roupa
velha, porque o remendo repuxa o pano, e o rasgo fica maior ainda. Também não
se põe vinho novo em barris velhos, senão os barris se arrebentam, o vinho se
derrama e os barris se perdem. Mas vinho novo se põe em barris novos e assim os
dois se conservam.» (Mt 9, 14-17)
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