14 dezembro 2010

Prova Geral de Filosofia UFSJ – análise crítica

Hoje tive um tempo para olhar a prova de filosofia da UFSJ, realizada no sábado dia 11/12. Fiquei muito desapontado com as questões. Mas não surpreso... Meus alunos do cursinho do Pitágoras estão de prova que eu estranhei o novo programa do vestibular de São João Del Rei (copiado da UFMG, que por sua vez é baseado no CBC da Secretaria de Ensino de MG). O programa entrava em contradição com os livros adotados pelo concurso. A contradição está no fato de o programa privilegiar temas filosóficos e seus principais problemas. Já os livros adotados são uma pequena introdução à filosofia escrita por um historiador marxista (Caio Prado Jr.) na década de 80 e um livro didático também escrito nos anos 80 por um historiador (Gilberto Cotrim) e que privilegia o ensino de filosofia por um enfoque histórico. Só para não ser injusto, o livro do Cotrim é uma boa obra de referência, eu mesmo já o utilizei como livro didático, mas não está de acordo com o programa sugerido, que é temático.

Acima expliquei porque não me surpreendi com a prova. Agora falarei do meu desapontamento. As questões estão muito longe de medir qualquer habilidade filosófica.  Foram 5 questões, sendo a primeira metafilosófica (sobre o que é a filosofia), 3 questões que poderiam ser consideradas pela teoria do conhecimento (embora possamos considerar uma das questões como filosofia antiga) e 1 questão sobre a dialética de Hegel-Marx.
Abaixo reproduzirei cada questão e uma análise do grau de dificuldade e conhecimento exigido:


QUESTÃO 16
Etimologicamente,  a  palavra  “Filosofia”  é  definida  como  “amor  à  sabedoria”.
Historicamente, a sua criação é atribuída a
A)  Anaximandro, séc. VII a.C.
B)  Tales de Mileto, séc. VII a.C.
C)  Anaxímenes, séc. VI a.C.
D)  Pitágoras, séc. VI a.C.

Essa foi a questão mais fácil da prova, saber a quem se atribui a criação do termo philos + Sophia. Segundo a tradição, Pitágoras não admitiu ser chamado de sábio (sophos), preferindo ser chamado de amigo do saber (philosophos). O cuidado que o candidato deveria ter é não marcar inadvertidamente a opção de Tales, que foi o primeiro filósofo conhecido, mas não o inventor da palavra filosofia.

QUESTÃO 17
Sobre o ceticismo, é CORRETO afirmar que
A)  os céticos buscaram uma mediação entre “o ser” e o “poder-ser”.
B) o ceticismo relativo tem no subjetivismo e no relativismo doutrinas manifestamente apoiadas em seu princípio maior: toda interatividade possível.
C)  Protágoras (séc. V a.C.), relativista, afirmou que “o Homem só entende a natureza porque o conhecimento emana dela e nela se instala”.
D) Górgias (485-380 a.C.) e Pirro (365-275 a.C.) são apontados como possíveis fundadores do ceticismo absoluto.

Essa foi uma questão de nível médio.  O ceticismo é estudado na filosofia antiga e na teoria do conhecimento. Na antiguidade temos os nomes de Górgias e Pirro. Na verdade, foi Pirro que intitulou-se cético, querendo com isso afirmar que continuava investigando (skepsis=investigação) enquanto outros filósofos (dogmáticos) pretendiam ter alcançado verdades. Górgias estava entre os que pensavam não haver nenhuma verdade. Para responder à questão o candidato precisava saber que há graus de ceticismo (relativo, absoluto). Exceto pela letra A, as outras alternativas erradas continham apenas detalhes que as tornavam inválidas: o princípio maior de “toda interatividade possível” da letra B e a citação erroneamente atribuída a Protágoras na letra C. Essa seria correta se rezasse “o homem é a medida de todas as coisas”.

QUESTÃO 18
John Locke é apontado como pioneiro do materialismo moderno. Sobre o “materialismo moderno”, é CORRETO afirmar que:
A)  “Deriva as 'ideias' de que se constitui o conhecimento diretamente das sensações que se marcaram na mente [...] não cabendo assim ao pensamento nada mais, [...] que combinar, comparar e analisar essas mesmas ideias.”
B)  “Todo o princípio do conhecimento material é sensorial, transponível, relativo e infinito.”
C)   “O valor da experiência sensível, como fator primário da elaboração cognitiva, está na possibilidade de conhecer a essência da natureza.”
D)  “O conhecimento deve ser introjetado a partir da experiência extrassensorial, peculiar a todo ser pensante.”

Essa questão me causou um certo espanto, pois nunca ouvi dizer que Locke fosse materialista. Descobri que é assim que o Caio Prado Jr. Chamou a corrente do empirismo, que pressupõe a experiência sensorial como fundamentação do conhecimento. Se o candidato não ficou confuso com o enunciado e com os jogos de palavras das alternativas, ele percebeu que a letra A expressa corretamente o conhecimento derivado das sensações e da combinação, comparação e análise que o pensamento possibilita. Ainda não descobri razão melhor para não marcar C do que o fato de que A concorda mais com a teoria do conhecimento de Locke.

QUESTÃO 19
Analise a seguinte afirmação:
“Uma prática pela qual conhecendo a força e as ações do fogo, da água, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diferentes misteres de nossos artesãos, pudéssemos aplicá-los pela mesma  forma a  todos os usos para os quais são próprios, e  tornando-nos assim como senhores e possuidores do Universo”.
Essa afirmação refere-se
A)  à alusão de Descartes acerca do conhecimento que se configura como domínio do Homem sobre a realidade.
B) à manipulação conceitual por meio da qual se originam todas as operações lógicas com a finalidade de alcançar o conhecimento.
C) à famosa questão dos “universais” que agitou e, dada a posição central que ocupa, atualizou  em  boa  parte,  durante  séculos,  o melhor  do  pensamento filosófico.
D) ao objeto de que se ocupam os pensadores que  levam em consideração o conhecimento, que deriva da metafísica aristotélica.

Essa foi talvez a questão mais ridícula que eu já vi em vestibulares que cobram filosofia: uma citação sem referências com a pergunta do tipo “quem disse isso?”.  Ora, nem o mais cartesiano dos filósofos sabe de cor o Discurso do Método na forma como foi citado por Caio Prado Jr. Dado o número incontável de filósofos existentes nesses 2600 anos de filosofia, não vejo como uma questão dessa revele mais do que a capacidade de eliminar opções improváveis. Por eliminação, letra A.


QUESTÃO 20
Para Caio Prado Jr., A observação de Engels:  “O núcleo que encerra as verdadeiras descobertas de Hegel... o método dialético na sua forma simples em que é a única forma justa do desenvolvimento do pensamento”, revela
A)   a herança da dialética hegeliana assumida por Karl Marx.
B)   a filosofia de Marx com sua herança escolástica partilhada por Hegel.
C)   a perspectiva dialética do Homem, que permite considerá-lo capaz de conceituar termos científicos no aspecto ou feição do Universo.
D)  o tema central da filosofia, a saber, o desenvolvimento da dialética do ser humano, fator determinante do existencialismo contemporâneo.

Essa é fácil. Herança hegeliana de Marx. O problema é que o enunciado foi tão mal escolhido que a única coisa que a citação revela é que Engels é hegeliano. Como o resto da prova, uma questão que espera que o candidato saiba de cor o que os avaliadores decidiram que é importante (ou o que eles acharam que ia confundir).

Minha avaliação geral é que esses são exemplos de questões que não deveriam estar numa prova de filosofia. Nenhuma das citações pode levar o candidato a responder corretamente ao enunciado. No fundo, pareceram questões feitas para errar. É fácil fazer questões que ninguém acerta em filosofia, basta perguntar o que só um bacharel em filosofia seria capaz de responder depois de muito estudo de textos filosóficos. Basta criar um jogo de palavras que confunda e crie alternativas quase corretas. Cabe pensar aqui também se a mudança do programa foi algo pensado ou só acompanhou a tendência da UFMG. Pois a prova da UFMG é uma prova realmente filosófica, em que o candidato precisa demonstrar capacidade de formular os problemas centrais de trechos filosóficos, além de argumentar, contra-argumentar e posicionar-se criticamente sobre eles.


Caso alguém me questione como seriam questões objetivas de vestibular de filosofia, eu sugeriria dar uma olhada nas provas da Universidade Estatual de Londrina. A UFU também tem questões objetivas que podem ser respondidas a partir do enunciado, mas que nem por isso são fáceis, aliás, muitas são bastante complexas.

O link da prova da UFSJ:

Um comentário:

  1. Realmente, de todas as universidades que eu vejo, essa prova de Filosofia é certamente muito, mas muito ruim mesmo. Os professores deveriam ter vergonha de ter feito um negócio tão ruim.

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