19 fevereiro 2008

O CETICISMO DE HUME

INTRODUÇÃO

O filósofo escocês David Hume tem um importante papel dentro da filosofia moderna. Empirista na linha de John Locke, para quem a mente seria uma tabula rasa, uma folha de papel em branco a receber impressões pela experiência sensível, concebe o conhecimento se dando de duas formas: impressões e idéias. As primeiras seriam percepções mais vivazes, enquanto as últimas seriam reflexões sobre as sensações, que nunca atingiriam o grau de vivacidade das impressões.

Ao afirmar que todo conhecimento só se adquire empiricamente, Hume nega a possibilidade de uma ciência metafísica e seu ceticismo faz com que Kant declare, em sua Crítica da Razão Pura, que foi o filósofo escocês quem o fez despertar de seu "sono dogmático".

1. Da contingência das afirmações sobre os fatos

O projeto científico moderno se baseava na produção de um conhecimento universal e necessário. Tal foi a intenção de Descartes ao escrever o Discurso do Método.

No entanto, Hume contesta a possibilidade deste tipo de conhecimento no que diz respeito aos fatos. A única forma de conhecimento que se pode ter sem uma experiência anterior seria o de um certo matiz de cor que faltasse numa gradação de matizes de uma mesma cor. Entretento, este exemplo é tão singular que não merece muita atenção do autor.

Ele divide os objetos da razão entre relações de idéias e de fatos. No primeiro gênero estão todas as afirmações intuitivamente ou demonstrativamente certas, como as proposições da Geometria, Álgebra e Aritmética. São verdades cuja demonstração se mostra sempre certa e evidente, independentemente da existência de tais formas geométricas ou matemáticas na natureza.

Já sobre o segundo gênero, o da relação dos fatos, não se pode chegar à mesma evidência que o primeiro. Para Hume, por mais evidência que se chegue sobre os fatos, seu contrário também não é contraditório, portanto, uma afirmação neste campo é contingente:

"As questões de fato, que formam os segundos objetos da razão humana, não são verificáveis da mesma forma; e tampouco a evidência de sua verdade, por maior que seja, tem a mesma natureza da antecedente. O contrário de toda afirmação de fato é sempre possível, pois que nunca pode implicar contradição e é concebido pelo intelecto com a mesma facilidade e clareza, como perfeitamente conforme à realidade." (HUME: 1984, pp. 143-144)

Hume, então, dá um parecer de que todos os raciocínios sobre questões de fato se fundam na relação de causa e efeito:

"Todos os raciocínios de fato parecem fundar-se na relação de causa e efeito. Só por meio dessa relação podemos ultrapassar a evidência de nossa memória e de nossos sentidos ( ... ). Todos os nossos raciocínios em torno de fatos são da mesma natureza. E aqui supomos constantemente que existe uma conexão entre o fato presente e o que dele inferimos". (HUME: 1984, p. 144)

O conhecimento dessa relação entre dois fatos distintos não se faz a priori, mas é originado da experiência, quando se verifica que certos objetos se nos apresentam constantemente ligados uns ao outros. Assim, de um objeto desconhecido, mesmo depois de minuciosamente examinado, não se poderia saber suas causas ou efeitos.

Para Hume, portanto, nunca se poderia, pela investigação racional, inferir um efeito de uma causa, uma vez que, como já foi citado anteriormente, seu contrário não é contraditório:

"Numa palavra, pois: todo efeito é uma ocorrência distinta de sua causa. Não pode por isso, ser descoberto na causa, e sua primeira invenção ou concepção a priori deve ser inteiramente arbitrária. E mesmo depois de sugerido sua conjunção com a causa não parecerá menos arbitrária, visto existirem sempre muitos outros efeitos que devem parecer à razão, tão coerentes e naturais quanto esse. Seria em vão, pois, que pretenderíamos determirmr qualquer ocorrência particular ou inferir qualquer causa ou efeito sem o auxílio da observação e da experiência".(HUME: 1984, p. 145)

Aqui, portanto, se encontra um dado importantíssimo sobre a (im)possibilidade do conhecimento. Por mais que a razão se esforce, para Hume, o máximo que conseguiria é reduzir os princípios que produzem os fenômenos naturais à sua maior simplicidade, a um pequeno número de causas gerais por meio de raciocínios baseados na analogia, na experiência e na observação. E sobre essas causas gerais nada se conseguiria descobrir a não ser explicações particulares não satisfatórias.

2. O círculo vicioso da causalidade e a postura cética

Em Hume, a experiência passada fornece informações diretas e certas sobre objetos precisos situados num período determinado. A previsão de que isso vai se repetir no futuro exige um termo médio desconhecido. Em outras palavras, os argumentos de que se deve confiar na experiência passada para nosso juízo futuro são apenas prováveis, o que leva a um círculo vicioso:

"Dissemos (...) que todas as nossas conclusões experimentais partem da suposição de que o futuro será conforme o passado. Por conseguinte, tentar provar esta última suposição por meio de argumentos prováveis, ou seja, argumentos relativos à existência, é evidentemente girar num círculo vicioso e tomar como assente o próprio que está em debate." (HUME: 1984, pp. 147-148)

O círculo vicioso a que se refere Hume pode ser entendido na necessidade de se ter a priori a certeza de que um mesmo efeito sempre se sucede a uma mesma causa, o que é arbitrário, e de que a natureza sempre se comporta da mesma maneira. No entanto, para afirmar o princípio da uniformidade da natureza, é preciso aplicar a lógica da indução, que como vimos, não tem fundamentação racional nenhuma além da crença de que o mesmo efeito se repetirá sempre que houver uma mesma causa.

Tudo isso é afirmado para comprovar que o raciocínio é incapaz de chegar a alguma conclusão acerca das causas e efeitos dos fenômenos. Sobre isso, Hume assume a posição cética, mas não fechada ao conhecimento.

3. A introdução do conceito de probabilidade nas ciências

Para o filósofo escocês, todas as inferências derivadas da experiência são efeitos do costume e do hábito. É, portanto, da repetição de eventos que vêm acompanhados de outros que se pode inferir alguma relação entre os mesmos, por uma crença na continuidade desses eventos observados:

" ( ... ) após descobrir, pela observação de muitos exemplos, que duas espécies de objetos, como a chama e o calor, a neve e o frio, apareçam sempre ligadas, se a chama ou a neve se apresenta novamente aos sentidos, a mente é levada pelo hábito a esperar o calor ou o frio e acreditar que tal qualidade realmente existe e se manifestará a quem lhe chegar mais perto." (HUME:1984, p. 153)

A única explicação de Hume para esse fato de os seres humanos fazerem inferências baseadas na experiência passada se dá a partir da crença e do hábito.

A conexão entre idéias particulares se dará, para o filósofo escocês, por três princípios: semelhança, contigüidade e causação. As inferências, neste caso serão apenas prováveis. E assim é introduzido o conceito de probabilidade na ciência. Na nota da seção VI, intitulada "Da Probabilidade", Hume retoma Locke, que afirma a existência de argumentos demonstrativos e prováveis. Hume prefere a divisão entre demonstrações, provas e probabilidades, tomando por provas os argumentos extraídos da experiência que não deixam dúvida.

Seu posicionamento cético vai, portando, rejeitar o projeto de uma ciência empírica que traga à luz um conhecimento universal e necessário. Pelo contrário, ele demonstra que o conhecimento empírico é particular e contingente, podendo "se universalizar" apenas dentro da probabilidade.

CONCLUSÃO

O posicionamento cético de David Hume apresenta-se como dissolução da pretensão da ciência de obter pela razão um conhecimento universal e necessário.

O filósofo em questão se nega a aceitar a lógica da indução como meio de ampliar o conhecimento. Para ele, é impossível afirmar racionalmente que um efeito sucederá a uma causa, uma vez que ambos são eventos diferentes que nosso hábito se acostumou a perceberem unidos.

Todo um conjunto de exemplos que queiram demonstrar uma causalidade só consegue se aplicar ao passado, não se podendo inferir nada sobre a necessidade daquilo se repetir no futuro.

O seu posicionamento cético introduz o conceito de probabilidade nas ciências. Assim, só se pode falar em previsão por indução num caráter de probabilidade, o que deixa ainda dúvidas de que sempre se confirmará uma teoria tirada de uma inferência.

Dessa forma, as ciências experimentais, a partir de Hume, não podem apresentar uma lei universal, ou pelo menos, suas leis estarão sempre sujeitas à comprovação empírica em que o primeiro fato que contrarie a regra, a tomará falsa.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. Trad. Leonel Vallandro. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os pensadores).

ADOLESCÊNCIA COMO IDEAL CULTURAL

“Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou, mas tenho muito tempo: temos todo o tempo do mundo. Todos os dias, antes de dormir, me esqueço e lembro como foi o dia. Sempre em frente, não temos tempo a perder…” (Trecho da música Tempo Perdido – Renato Russo)

A grande limitação da sociedade ocidental, que viu avanços inegáveis nas últimas décadas nas áreas da saúde, transporte, tecnologia etc, é deparar-se com uma condição incontornável: a morte.

É justamente nesta época em que se percebeu a frustração da finitude humana, em que as pessoas procuram prolongar sua vida, não conversam mais sobre a morte, retiram-na do cotidiano, e se recusam a aceitar o destino de todo vivente, é aí que ocorre a “invenção” da adolescência.


Até poucas décadas atrás, o ideal do adolescente era tomar parte do mundo dos adultos. A sociedade era tradicional, ou seja, os lugares e os papéis já estavam pré-estabelecidos e a vida, mesmo depois da morte do indivíduo, tinha continuidade na comunidade. Esse modelo tradicional e comunitário impunha forte controle sobre a pessoa, e os adultos eram os protagonistas da vida social. Ao adolescente restava conquistar a “maioridade” perante a sociedade.

Com a passagem do modelo tradicional para o contemporâneo, com a primazia do indivíduo sobre a sociedade, a morte torna-se por sua vez uma experiência pessoal, carente de significação subjetiva na existência de cada pessoa. É preciso, em outras palavras, buscar um sentido para a vida e para a morte, que já não está no âmbito comunitário, mas, mesmo que o indivíduo possua uma fé religiosa, reside na intimidade pessoal.

A única instituição tradicional comunitária que perdurou foi a família, que se une pelo laço de amor. A família contemporânea pede que a criança se submeta por amor, mas também a incentiva a se libertar da condição familiar e responder às expectativas paternas, realizando os sonhos do pais frustrados por sua mortalidade.

A infância surge não mais como fase de adultos em miniatura, mas como fase humana específica e especial, alimentando o desejo de realização dos adultos. Estes vêem nas crianças a possibilidade de realização que lhes foi negada pela concreteza da vida e pela sua finitude.
Para os adultos, a infância constitui consolo e esperança: ao olharem para as crianças, sentirão que sua obra inacabada terá com elas continuidade. Ao mesmo tempo sua eterna insatisfação e ambição se tornam suportáveis pois o fracasso alimenta a espera de que as crianças revezarão com eles. Além disso, elas proporcionam um prazer estético.

Por isso os adultos se “derramam” pelas crianças e lhes negam qualquer infelicidade, como se fosse possível garantir a realização de todos os desejos delas. A infância passa a ser tida como uma fase de felicidade, sem o compromisso, a responsabilidade adulta. As crianças são vestidas para comporem a imagem da segura felicidade, se tornando objeto de contemplação, remetendo sempre à infância como fase mítica da realização que nunca alcançaremos.

Com esse ideal, para além do prazer estético, a sociedade moderna força o prolongamento da infância e inventa a adolescência. Pois se a infância é um ideal de momento feliz, é um ideal comparativo, já que a maioria dos adultos não gostaria de voltar a ser criança.

Mais interessante do que de como os adultos olham a infância, é a forma como os adultos vêem os adolescentes. Estes representam um ideal identificatório: têm um corpo capaz de prazer, semelhante ao corpo adulto, com a vantagem da não necessidade de assumir responsabilidade, não ter de sustentar cônjuges e filhos, ter tempo disponível para festas, viagens…

Estabelece-se assim um paradoxo: os adolescentes querem fazer parte do mundo dos adultos e essa participação é negada, por isso formam grupos com que se identificam. Por outro lado os adultos desejam ser como os adolescentes e essa negação da participação é, na verdade, expressão de seu desejo de ver os adolescentes sempre rebeldes e irresponsáveis como gostariam de ser.

Há a tendência dos adolescentes a formar um grupo, rebelando-se contra o mundo adulto que lhes nega participação. Tal tendência é usada e exaltada pela mídia e pelo marketing que aproveitam para propor modelos de comportamento e de consumo, visuais, acessórios e estilos. Não somente para os adolescentes, mas também para os adultos, que começam a consumir produtos para jovens. Desde os anos 80 o marketing vem se especializando em adolescência: eles são numerosos e possuem mais dinheiro a cada ano e apresentar produtos voltados para adolescentes é incentivar o consumo adulto, que também sonha com a juventude.

A rebeldia característica da adolescência não é revolta pela exclusão do mundo adulto, mas cumprimento da vontade destes. O ideal cultural em nossa sociedade é a insubordinação, e a revolta torna-se a realização do sonho dos adultos. Estes se tornam com isso expectadores vendo seus desejos realizados nos adolescentes.

Com isso, tornam-se o próprio objeto de desejo dos adultos, ou seja, estes percebem o adolescente como a realização de seus sonhos: prazer sem responsabilidade, jovialidade. Os adultos se dão conta de que suas vidas vão acabando e que não se realizaram, mas o adolescente pode viver intensamente o que aqueles não devem mais por sua idade, e pelos compromissos sociais, de trabalho e da família. Por isso são os próprios adultos que empurram ao adolescente o signo da rebeldia e da irresponsabilidade. Torna-se assim o ideal cultural da sociedade.

Os adultos precisam tanto da adolescência como ideal para realizar-se, que Contardo Calligary afirma: “Se a adolescência não existisse, os adultos modernos a inventariam, tanto ela é necessária ao bom desempenho psíquico deles.”. (CALLIGARY, 2002, p. 60).

O fenômeno que se observa com isso, é que não só os adultos procuram vestir-se e comportar-se como adolescentes, mas vestem as crianças semelhantemente. O que se percebe é que a o comportamento adolescente típico tem ocorrido mais precocemente nas crianças e a maturidade tem atrasado. Os adolescentes não querem mais chegar rapidamente à idade adulta, mas preferem permanecer adolescentes. Há, até mesmo, casos de pessoas de 40 anos que não querem sair da casa dos pais, casar-se ou conduzir a sua vida à maturidade. Essa atitude é compreensível quando o adolescente se percebe como a realização dos sonhos dos adultos, quando todos querem ser como ele é, possuir o viço de sua juventude.

Naturalmente, não quererá amadurecer, pois isso exige capacidade de enfrentar a vida, as frustrações, o medo e a angústia que todo processo humano causa. Exige que o fracasso possa fazer parte da vida, que se tenha responsabilidade para assumir as próprias atitudes.

Essa tendência da adolescência como ideal é típica do americanismo: sociedade de consumo, individualista, hedonista. Talvez por isso Renato Russo tenha chamado sua geração de “geração Coca-Cola” em uma música homônima.

Ao recusar-se a morrer, os adultos da sociedade ocidental voltam-se para os adolescentes e fazem “curvar” a linha do tempo, ao contrário do oriente ou das sociedades que se relacionam pacificamente com a idéia da morte e da continuidade da vida.

É isso que Renato Russo canta na primeira frase do trecho citado no início do texto: o tempo passa continuamente e cada tempo desperdiçado é tempo perdido, mas para os jovens há “todo o tempo do mundo”.

Essa é mesma ideologia transmitida pelos anúncios publicitários voltados para os adolescentes, vinculando um produto ao ideal de liberdade, de curtição, de um tempo estático na juventude, ou seja, não é uma fase passageira da vida, mas a única fase em que se vive realmente a vida.

Não admira que nessa sociedade capitalista, os idosos sejam “enterrados” antes de morrer. Não se admite ao ancião os direitos por seu trabalho de anos a fio, sua experiência é desprezada como tudo que não é jovem, dinâmico, “moderno”. O idoso é tido como alguém que já está ultrapassado, perto da morte e não mais capaz de curtir a vida.

Vive-se sob a tirania da eterna juventude, as pessoas adultas querem aparentar menos idade do que têm, vestem-se como seus filhos, recorrem a cirurgias plásticas para apresentar o ideal de beleza imposto pela cultura ocidental: o que é jovem é belo.

É por isso que a Campanha da Fraternidade 2003 da CNBB alertou para a questão dos idosos. No texto base dessa campanha há uma afirmação que se repete ao longo do documento expressando a seguinte idéia: “Ninguém quer envelhecer, mas todos querem viver para sempre”. Afinal, como é que se quer viver mais sem envelhecer? Quer-se viver para sempre, mas como jovem, não como pessoa madura.

Por fim, resta-nos perguntar até quando a adolescência será o ideal cultural da sociedade, se esse movimento em torno da busca da eterna juventude e da estética dará ou não lugar a uma sociedade que também valorize a profundidade de vida, a experiência dos idosos e, que, realisticamente, encarará o problema da morte como constituinte da vida. Envelhecer é a tarefa dos adolescentes, mas enquanto esse processo for tratado como fim da linha e não como nova experiência, não chegaremos a uma sociedade que respeite o ancião e que se volte para valores duradouros, que realmente transformem o ser humano em seres melhores, ao contrário dos valores fugazes que se propõem por aí nos outdoors.

Até que chegue este dia, se a morte não nos chegar primeiro, corramos contra o tempo e cantemos com o poeta: “sempre em frente, não temos tempo a perder…”.


BIBLIOGRAFIA

CALLIGARY, Contardo. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2002. p.56-74.

CNBB. Texto-base da Campanha da Fraternidade 2003. São Paulo: Editora Salesiana, 2003.