13 maio 2008

O PLURALISMO RELIGIOSO EM QUESTÃO

- Contribuições de Rahner, Küng e Hick para o diálogo inter-religioso -
COLOCAÇÃO DO PROBLEMA

O adágio patrístico “extra ecclesiam nulla salus” fora originalmente criado para reconciliar os cristãos que durante a perseguição romana renegaram a fé e, arrependidos, pediam sua reintegração à comunidade religiosa. Tardiamente a frase foi descontextualizada a ponto de ser formalmente definida no IV Concílio de Latrão (1215) com o significado de uma exclusividade dos meios da salvação à Igreja Cristã.
De fato, durante o período da Cristandade, a Igreja identificava sua existência como vontade divina e sua instituição equivocadamente confundia-se com o próprio Reino de Deus na terra. Como as esferas religiosa e política se confundiam, era natural pensar que o mundo devia ser literalmente conquistado para a “verdade” cristã.
O contato com o oriente e com suas religiões e, posteriormente, com o novo mundo das Américas levantava questões urgentes: como fica a salvação de tão grande parcela da humanidade? Muitos missionários surgiram pelo zelo da tarefa de tornar a “Verdade” conhecida desses povos. A convicção de que a salvação só é possível na Igreja também justificava cruzadas, guerras, anexações territoriais, imposição do batismo e todo tipo de atrocidade cometida em nome de Deus.
O processo de secularização iniciado na modernidade ganhou em maior ou menor grau todo o ocidente “cristianizado”, instaurando uma separação entre Igreja e Estado, o fim do monopólio religioso da Igreja Católica, uma confiança na autonomia da razão. A partir desse momento da história, a voz do Catolicismo deixou de ser a legítima autoridade que fala em nome de Deus, e passou a ser apenas mais uma voz apagada concorrendo com tantas outras vozes que falam ao ser humano hoje. Em nome da laicidade dos estados, é permitida a prática de qualquer religião no território desses países e os fiéis de várias tradições religiosas precisam conviver, compartilhar ambientes de trabalho, estudo e lazer. Cristãos de diversos ramos e não-cristãos vivem problemas comuns e buscam soluções que contemplem a todos.
Torna-se óbvio que nesse novo contexto, não é possível manter a mesma resposta para o problema do ecumenismo e da salvação dos não-cristãos. É justamente a questão da salvação nas religiões que vai ser discutida a partir da teologia pluralista atual. Tais são as perguntas que demandam uma resposta: Cristo é necessário para a salvação da humanidade? A salvação passa apenas por Cristo? As religiões são caminhos de salvação? Essa salvação ocorre em Cristo ou por meio das práticas religiosas sugeridas por aquela tradição religiosa? A pluralidade de religiões faz parte do desejo de Deus ou são apenas preparação para o Cristianismo?
Dependendo das respostas dadas a tais questões vão se delineando posições mais ou menos abertas, ou mais ou menos fechadas para o pluralismo e o diálogo inter-religioso. E é claro que, conforme as soluções apresentadas, muitos dos dogmas cristãos precisam ser repensados, o que torna essa tarefa mais desafiante.
Podemos citar quatro posturas que refletem o quanto ainda é preciso caminhar nesse campo:
1) Exclusivista – é a postura tradicional, limita a salvação somente aos batizados.
2) Inclusivista fechada – reconhece elementos cristãos nas outras tradições e, portanto, a salvação por participação, mas a plenitude da salvação só ocorre dentro do Cristianismo Católico;
3) Inclusivista aberta – Avança na postura anterior. Considera o evento Cristo fundamental, com valor de salvação universal, não só para os Cristãos que o professam, mas todos seres humanos de todas religiões. Estas conservam seu valor próprio.
4) Pluralista – Entende que as várias tradições religiosas são desejo de Deus e plenos caminhos de salvação, não necessitando da mediação de Cristo.

Neste trabalho veremos a solução de dois inclusivistas abertos e um pluralista. Os motivos para tal escolha configuram no fato de que tanto no exclusivismo quanto no inclusivismo fechado não há possibilidade de diálogo de igual para igual entre religiões não-cristãs e a religião cristã.
1 - A TEORIA DOS CRISTÃOS ANÔNIMOS
A tarefa de reconciliação da Igreja com a modernidade foi empreendida pelo Concílio Vaticano II, nos anos 60. Os documentos do Concílio falam de “sementes do Verbo” espalhadas nas culturas. A nova postura de abertura e diálogo passa a reconhecer o valor das tradições culturais e a presença escondida de Cristo nelas.
A teologia do Concílio, apesar de ainda permanecer numa penumbra de inclusivismo fechado foi enormemente influenciada por um grande teólogo alemão: Karl Rahner.
Rahner admite, com uma linguagem kantiana, que o ser humano tem as condições de possibilidade de acolher a revelação divina. Em outras palavras, a antropologia rahneriana é positiva em relação à salvação de todo ser humano. Ele admite que o ser humano foi criado com essas condições transcendentais, como uma oferta divina, o chamado “existencial sobrenatural”.
Esse “existencial sobrenatural” de que fala Rahner permite que a pessoa acolha a proposta salvífica dentro de sua história concreta, mesmo não sabendo nomeá-la. Rahner chama essa experiência de conhecimento anônimo e atemático de Deus.
Como, para Rahner, a história salvífica coexiste com a história humana de maneira inseparável, fica claro que o desejo de Deus é a salvação universal. Nessa história humana, que é também divina, Jesus Cristo é a máxima auto-comunicação de Deus ao homem, e o cristianismo é a memória desse acontecimento.
Apesar de ser passível de críticas, essa postura de Rahner tentava salvaguardar os dogmas da Igreja Católica, assumindo positivamente toda experiência humana, inclusive a posição do ateísmo, uma vez que a acolhida para o projeto salvífico pode ser atemático:

"Também aquele que em sua consciência verbalmente objetivante não pensa explicitamente em Deus ou estima dever refutar um tal conceito como contraditório, tem sempre e inevitavelmente o que fazer com Deus na sua consciência profana. E o acolhe atematicamente como Deus no momento em que acolhe a si mesmo livremente em sua própria transcendentalidade ilimitada".[1]

Como já foi referido anteriormente, no pensamento de Karl Rahner a pessoa de Jesus Cristo é a máxima expressão da comunicação divina. Sendo assim, o Cristianismo torna-se o acabamento de todas as religiões e não é possível falar de salvação sem referir-se a Cristo.
É dentro desse esquema conceitual que surge a expressão rahneriana de “cristãos anônimos”, segundo a qual, nas palavras de Faustino Teixeira,

"não é o fato de alguém se encontrar fora do perímetro de ação da Igreja ou das Igrejas cristãs, e de sua mensagem evangelizadora, que determina a dinâmica negativa de sua relação com o mistério salvífico, mas o exercício da fé, da esperança e da caridade, que se realiza sempre na atmosfera da graça de Jesus Cristo".[2]

A teoria dos cristãos anônimos inclui, portanto, na dinâmica da salvação, todos os que praticam as virtudes teologais, mesmo não assumindo explicitamente o cristianismo como sua religião.
Essa posição, que hoje parece comumente aceita inclusive pelos fiéis leigos, foi um avanço dentro da época em que foi apresentada e causou reações dentro do quadro dos teólogos mais tradicionais. Isso obrigou Rahner a explicitar a distinção da qualidade da mediação de Cristo entre o cristianismo anônimo e o cristianismo professado. Dessa forma, o autor se viu forçado a dizer de maneira clara a importância da Igreja e da evangelização no plano da salvação, já que a preocupação dos teólogos era que tanto Igreja quanto a evangelização missionária perderiam sentido com a tese dos cristãos anônimos.
O fato é que, mesmo sendo uma postura avançada para aquele momento histórico específico, a teoria do cristianismo anônimo mereceu muitas críticas dos teólogos do pluralismo religioso. A principal delas é a de que, como a própria terminologia indica, Rahner coloca todas as demais experiências religiosas subordinadas ao cristianismo, e “obriga” os não-cristãos a acolherem uma posição religiosa contra a sua vontade e especificidade. Os próximos teólogos a serem estudados apresentarão suas próprias críticas ao cristianismo anônimo.
2 - A CRITERIOLOGIA ECUMÊNICA DE HANS KÜNG

O teólogo suíço Hans Küng (1928 - ) empreende a tarefa de apresentar critérios ecumênicos (universais) de reconhecimento da verdade de qualquer religião[3]. A pergunta orientadora é a seguinte: o que faz uma religião ser verdadeira? A novidade dessa abordagem é o fato de que esses critérios permitem não só avaliar as religiões não-cristãs sob a ótica do “acabamento” no cristianismo, mas inversamente, permite também críticas das demais tradições religiosas sobre o que falta de verdade à doutrina cristã.
Em primeiro lugar, Küng faz considerações sobre quatro posições fundamentais com relação às religiões[4]:
A) Nenhuma religião é verdadeira. Todas são igualmente falsas. É a posição atéia. Küng diz que não há como silenciar essa crítica. Mas considera que, ainda que não haja provas possíveis para contestar essa postura, a história da humanidade desde o homem de Neandertal até a grande maioria das pessoas de nossa época atesta o fato comum da religiosidade.
B) Apenas uma religião é verdadeira. Todas as outras são falsas! Essa posição corresponde à postura tradicional católica, que foi abandonada no Vaticano II com a distinção de caminho “ordinário” (cristão) e caminhos “extraordinários” (não-cristãos). Hans Küng lamenta que a maioria dos representantes da teologia protestante não tenha dado esse mesmo passo. Ao contrário, eles consideram que o cristianismo não é religião, mas o fim de toda religião. Sobre a salvação dos não-cristãos, existe uma lacuna nessas teologias, o que as torna criticáveis.
C) Toda religião é verdadeira. Todas as religiões são igualmente verdadeiras! Essa postura nega as particularidades, nega a possibilidade do erro num fato que é humano e, portanto, falível. Além disso, essa posição instaura um relativismo que nivela as experiências religiosas autênticas com crendices e irracionalidades num mesmo patamar de igualdade.
D) Só há uma religião verdadeira. Todas as religiões participam da verdade da religião única! Essa postura (inclusivista) é típica das religiões de origem indiana. E corresponde no Cristianismo à teoria dos cristãos anônimos. É, para Küng uma inclusão artificial, já que judeus, muçulmanos, hindus, budistas, não se salvam por serem judeus, muçulmanos etc, mas por serem cristãos, sem o saber.
Küng visa, depois dessas considerações, propor uma atitude cristã diante das demais religiões que não seja indiferentismo, relativismo ou sincretismo. Para ele não é possível renunciar à questão da verdade em nome de uma democracia religiosa.
Dessa forma, o teólogo suíço propõe os três seguintes critérios[5]:
2.1) O humano, critério ético geral
Esse seria o principal critério. Uma religião não pode ser verdadeira se oprime, reduz, desumaniza, fere a dignidade humana. Se seus ritos, doutrinas e moralidade opõem-se ao crescimento e vida plena do ser humano. Ao contrário, uma religião é verdadeira e boa se permite e favorece às pessoas, uma existência rica e plena, carregada de sentido. Se sua instituição protege a vida e busca a sua realização.
2.2) O autêntico ou canônico: critério religioso geral
Segundo Küng, toda religião pode ser avaliada por sua própria doutrina fundamental, livro sagrado e fundador:

"O critério de autenticidade (daquilo que é original) ou da canonicidade (daquilo que é normativo) não deveria valer apenas para os cristãos, mas poderia constituir um critério religioso geral, em princípio também aplicável a outras religiões: uma religião é avaliada segundo suas doutrinas ou práxis normativas (Torá, Novo Testamento, Corão, Vedas) e, em alguns casos também segundo a pessoa de seus fundadores (Cristo, Maomé, Buda)". [6]

Trata-se, portanto, de verificar o que é realmente essencial, original e normativo daquela expressão religiosa. Em outras palavras, intui-se que a verdade da religião está também no seu específico, na sua identidade. Muitos equívocos históricos, exageros e despersonalizações podem e são resolvidos no movimento de volta às fontes.
2.3) O critério especificamente cristão
Esse critério é o desdobramento do anterior para o caso específico do cristianismo. O autor afirma que, para um estudioso das religiões “neutro” (que faria essa análise “de fora”) o cristianismo se insere entre as demais tradições religiosas e com elas se submete aos critérios gerais de verdade. Neste caso existem várias religiões verdadeiras.
Mas no caso do teólogo em questão, que é cristão, a análise se faz a partir “de dentro”. Ele se confessa cristão e reconhece que o cristianismo o realiza nos critérios. Então, para o cristão Hans Küng, essa religião específica é a “verdadeira religião”.[7]
3 - O PLURALISMO DE JOHN HICK
Se Küng avança em relação a Rahner no reconhecimento do específico de cada tradição religiosa. O teólogo protestante Jonh Hick dá um passo bem mais ousado: questiona a maneira como se formula um dos principais dogmas do cristianismo: a encarnação do verbo.
A linguagem dogmática e a verdade que ela quer representar são problemáticas do ponto de vista do pluralismo religioso. Se Jesus é, literalmente, o próprio Logos divino tornado ser humano, então só pode haver uma única religião verdadeira, uma vez que é fundada pelo próprio Deus. E por que Deus se revelaria definitivamente para apenas uma parcela da humanidade? Para uma cultura tão específica?
Tal dogma poderia ser usado como justificativa para uma série de atrocidades (apesar de não decorrerem do dogma, mas da cobiça humana): anti-semitismo (os judeus assassinaram o próprio Deus), a exploração colonial do Terceiro Mundo, patriarcalismo ocidental, complexo de superioridade frente a outras expressões religiosas. [8]
Além disso, para Hick, a afirmação das duas naturezas de Cristo (Calcedônia - 451) não explica como se dá essa união do divino e do humano em Jesus de Nazaré:

"(...)O problema não se encontra numa linguagem e conceptualidade antiquadas, mas no fato de que, na verdade, o Concílio apenas afirmou que Jesus foi “verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem”, sem tentar dizer como tal paradoxo é possível. (...)Declarar simplesmente que duas naturezas diferentes coexistiram em Jesus “sem confusão, sem modificação, sem divisão e sem separação” é pronunciar uma forma de palavreado que até agora não possui um sentido especificado. A fórmula coloca diante de nós um “mistério”, e não uma “idéia clara e distinta”. Além disso, esse não é um mistério divino, e sim um mistério criado por um grupo de seres humanos que se encontraram em Calcedônia, numa região que hoje pertence à Turquia, em meados do século V".[9]

Todas as tentativas de explicitação do dogma de Calcedônia parecem esbarrar ora numa impossibilidade de afirmar a Divindade de Cristo, ora de reconhecer nele a divindade, em detrimento do “verdadeiro homem”, o que tornou os esforços teológicos nesse sentido, frequentemente heréticos.
A obra em que nos baseamos para este trabalho não trata especificamente da questão do pluralismo religioso, mas de uma cristologia que possibilite esse pluralismo. Pormenorizar sua cristologia seria uma tarefa muito além da proposta desse estudo. Porém, convém ressaltar pelo menos as principais conclusões de Hick no campo cristológico para conhecermos sua postura pluralista.
John Hick apresenta Jesus de Nazaré como profeta escatológico do Reino. Analisa como Jesus foi declarado o Cristo por seus seguidores e como finalmente ele foi proclamado Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o que parece, segundo o autor, extrapolar a própria consciência do Nazareno. Hick critica as teorias atuais que tentam explicar a dupla natureza de Cristo. Mostra os efeitos colaterais do dogma (já aludidos anteriormente) e discute a possibilidade de outras encarnações.
Sobre esse último assunto, o autor nos faz descobrir que Tomás de Aquino já tinha levantado essa hipótese e afirmado serem possíveis mais encarnações do Verbo. Hick desenvolve essa possibilidade e pergunta se seria admissível pensar em outros grandes nomes das religiões como múltiplas encarnações divinas:

"Assim, se admitirmos junto com Tomás de Aquino a possibilidade dessas outras encarnações do Verbo eterno, a próxima questão naturalmente será se, do ponto de vista cristão, líderes espirituais que marcaram toda uma época – tais como Moisés, Gautama, Confúcio, Zoroastro, Sócrates, Maomé e Nanak – não podem de fato ter sido encarnações divinas". [10]

Hick considera seriamente essa hipótese, apesar de afirmar que nenhum desses líderes aceitaria tal vinculação com a divindade por motivos conceituais ou religiosos. Segundo o autor, por causa dos estudos modernos, entende-se que o Jesus histórico nunca teria afirmado ou pensado ser Deus encarnado.
A proposta de Hick, portanto, seria a consideração do dogma como uma metáfora. Ele aponta a dificuldade dos ocidentais em acolher a metáfora como tal, insistindo em considerar tudo sob uma ótica cientificista, de correspondência da linguagem com a realidade. Se o dogma fosse entendido não como uma realidade ontológica, nem com a seriedade de uma declaração de verdade metafísica inquestionável, mas como uma metáfora, uma maneira poética de dizer uma verdade que não demandaria explicações mirabolantes, tal linguagem seria mais crível.
Para o autor, o sentido literal da encarnação seria insustentável ao passo que o sentido metafórico é perfeitamente possível e comunica algo de tremenda importância sobre Jesus, sobre o fundamento da fé cristã:
"Na medida em que um homem ou mulher é para Deus aquilo que sua própria mão é para si, Deus estará “encarnado” na vida humana em questão na mesma proporção. Compreendida desta forma, a idéia de encarnação de Deus na vida de Jesus não é, portanto, uma reivindicação metafísica de que Jesus teve duas naturezas, mas sim a afirmação metafórica do significado de uma vida por meio da qual Deus estava agindo na terra. Em Jesus, vemos um homem que viveu com um grau surpreendente de consciência de Deus e de resposta à presença de Deus".[11]

John Hick ainda debate sobre a teologia do resgate, proposta por Santo Anselmo. Este afirmava que Deus precisava do sangue do Filho para reparar os pecados da humanidade. Tal fórmula, que perdurou por muitos séculos na teologia latina - inclusive nas orações litúrgicas -, é muito pobre em relação à “theosis” da tradição ortodoxa. O modo oriental de pensar a salvação passa por uma transformação, uma divinização do ser humano, na qual a encarnação, a ressurreição e o Espírito têm papel preponderante. Desse modo, ele pode diminuir o peso histórico que a morte de Jesus adquiriu para a questão da salvação.
Sobre a realidade da diversidade de crenças, religiões e credos, Hick, munido da discussão anterior sobre o sentido da salvação, afirma que os cristãos não parecem “mais salvos” do que os fiéis das demais tradições religiosas. Há tantos homens santos no cristianismo quanto nas religiões não-cristãs. E não há mais pessoas más, infantis, prejudiciais para a humanidade nas tradições não-cristãs do que no seio do cristianismo.
Para superar essa dificuldade de lidar com a pluralidade de credos, Hick propõe uma solução baseada no pensamento de Kant sobre a distinção entre a coisa-em-si (noumenon) e o fenômeno (aquilo que se mostra). A realidade transcendente, que Hick chama simplesmente de “Real”, é inacessível em sua transcendência (tal como a coisa em si de Kant), mas pode ser experimentada nas realidades históricas e na contingência humana:

"Em termos kantianos, o noumenon divino, o Real an sich, é experimentado por meios de diferentes receptividades humanas enquanto uma gama de fenômenos divinos em cuja formação conjuntos distintos de conceitos religiosos desempenharam uma parte essencial". [12]

Nesse sentido, as várias maneiras de experimentar o fenômeno religioso constituem as formas como o “Real” se manifesta, formas que são constituídas pelas tradições culturais, históricas. Todos esses esquemas são as lentes por onde se enxerga o Real em cada religião.
Antes que fosse acusado de relativizar a realidade religiosa, Hick propõe algumas explicações sobre sua postura. Para ele, tal posicionamento evita pensar ser desnecessário ou vazio o fundamento das religiões: “O Real”. Por outro lado, também evita identificar o Real com as limitadas visões de uma religião em particular.
CONCLUSÃO:

As religiões tocam naquilo que o ser humano tem de mais arraigado e significativo. Abraçam todas as relações, tocam toda rede de significados que vamos criando em nossa existência, dão sentido à vida e à morte.
É natural também que, sendo profundamente ligadas à experiência humana histórica e cultural, as tradições religiosas sejam tão diversas e, muitas vezes, bastante divergentes. Perguntamo-nos então: será que essa diversidade não é querida por Deus? Pela própria estrutura deste trabalho queremos apresentar uma resposta afirmativa. Mas o outro problema que ocupou também os teólogos cristãos aqui brevemente estudados foi a relação dessa pluralidade factual, com a “inegociável” doutrina da salvação em Cristo. Esse inegociável está entre aspas porque é o que constitui o diferencial cristão em relação às demais tradições religiosas. Por uma questão de identidade, o cristão-teólogo não pode renunciar à importância de Cristo na economia da salvação.
Todos os autores apresentados fizeram suas tentativas de responder a esses problemas.
O primeiro, Karl Rahner, com a teoria dos cristãos anônimos, visava incluir a experiência atemática, não-nomeada, de Deus na própria estrutura antropológica. Assim caracteriza-se um existencial sobrenatural que permite a salvação de todos numa adesão não confessa e desconhecida a Cristo pela vivência das virtudes.
Hans Küng, por sua vez, prefere não correr o risco de submeter as religiões não-cristãs a um absolutismo cristão. Ele prefere pensar que o budista se salva por ser budista, o hindu por ser hindu e o muçulmano por ser muçulmano (e não por serem cristãos sem o saber). Neste sentido, ele prefere buscar o que há de verdadeiro em cada religião, e propõe critérios: 1) O Humano, que corresponde a reconhecer a verdade nas religiões que favorecem a humanidade e cada ser em particular; 2) O Canônico, que compara uma religião da forma como ela se apresenta hoje com suas escrituras sagradas e com seus líderes fundadores; 3) O específico cristão, que procura interrogar o próprio cristianismo à luz do segundo critério.
Por último, John Hick tenta, por uma nova cristologia, desfazer-se da literalidade dos dogmas cristãos para tirar o empecilho de uma superioridade do cristianismo frente outros caminhos de salvação. Sua proposta é entender a encarnação como uma metáfora de um homem profundamente identificado com o projeto divino, um homem no qual muitas pessoas descobriram o sagrado. Por isso Jesus é encarnação, palavra de Deus. Nessa perspectiva, Cristo é a realização do ser humano, ou melhor, o que todos ser humano é chamado a ser. Também segundo essa visão, outros líderes que igualmente levaram as pessoas de suas respectivas tradições religiosas a conhecer a dimensão do Real poderiam ser entendidos como encarnações. Para Hick, portanto, o conhecimento imediato e definitivo do Real é impossível a não ser pelas mediações religiosas, que não conseguem dar conta dessa totalidade. Por isso há tanta diversidade.
O desafio não parou nesses pensadores. Cada teoria tem seu limite. Uns, por desmerecerem outras tradições, outros por avançarem mais do que as Igrejas Cristãs conseguem digerir. Mas reconhecemos a validade dessas tentativas e desejamos que tantas diferenças religiosas não sejam vistas como barreiras ao diálogo. Que sejam reconhecidas como uma “multiforme graça de Deus”. E que, principalmente, entendamos o quanto cada tradição espiritual ganha com a riqueza uma da outra.

BIBLIOGRAFIA

GEFFRÉ, Claude. O lugar das religiões no plano da Salvação in: TEIXEIRA, Faustino (org). O diálogo inter-religioso como afirmação da vida. São Paulo: Paulinas, 1997

HICK, John. A metáfora do Deus encarnado. Petrópolis: Vozes, 2000.

KÜNG, Hans. Teologia a caminho: fundamentação para o diálogo ecumênico. São Paulo: Paulinas, 1999. (Pensamento Teologico).

TEIXEIRA, Faustino Luiz Couto. Diálogo inter-religioso: o desafio da acolhida da diferença. Perspectiva Teológica (Belo Horizonte), Belo Horizonte , v.34, n.93 , p.155-177, maio/ago. 2002.

______. Karl Rahner e as religiões. Perspectiva Teológica (Belo Horizonte), Belo Horizonte , v.36, n.98 , p. 55-74, jan./abr. 2004.


[1] RAHNER, citado por TEIXEIRA, Faustino. Karl Rahner e as religiões. Perspectiva Teológica n.36. p. 62
[2] TEIXEIRA, Faustino. op cit. p. 66.
[3] cf. KÜNG, Hans. Teologia a caminho: fundamentação para o diálogo ecumênico. Terceira parte, seção II.
[4] Cf. KÜNG, Hans. op cit. pp. 264-271
[5] cf. idem pp. 274-288
[6] Idem. p. 281.
[7] O autor deixou um parágrafo inteiro (pp 285-285) em que professa sua fé cristã: “Por que sou cristão? (...) Aqui posso indicar o que considero mais essencial: sou cristão porque aceito – em conseqüência da fé judaica em Deus e como antecipação da fé islâmica – com confiança e de forma prática em que o Deus de Abraão, Isaac (e Ismael) e Jacó não só agiu na história de Israel e falou pelos seus profetas, mas manifestou de modo incomparável e para nós decisivo, na vida e na atuação, na paixão e morte de Jesus de Nazaré. Já a primeira geração de discípulos estava persuadida de que, apesar de sua morte vergonhosa na cruz, ele não permaneceu prisioneiro da morte, mas foi acolhido na vida eterna de Deus. (...) Portanto, sou cristão porque creio neste Cristo (...) e procuro segui-lo na prática e o tomo como guia em meu caminho."[8] cf. HICK, John. A metáfora do Deus encarnado. Todo o capítulo 8 – Efeitos colaterais históricos do dogma da Igreja - é dedicado à forma como o dogma da encarnação foi utilizado indevidamente para justificar abusos injustificáveis.
[9] Idem. pp 69-70
[10] Idem p. 133
[11] Idem. p. 145
[12] Idem. p 189