25 novembro 2008

Seria a ciência realmente racional?


- Argumentos de Paul Feyerabend a favor de um "anarquismo epistemológico" -


( Esse artigo foi originalmente escrito como parte da delimitação do problema para o projeto de pequisa intitulado A MUDANÇA NAS CIÊNCIAS SEGUNDO PAUL FEYERABEND, de minha autoria. Como todo projeto, tem caráter provisório e pode se mostrar ainda superficial. Entretanto foi com esse projeto que fui selecionado para o programa de Mestrado em Filosofia da UFMG. Dedico essa postagem a todos meus amigos e familiares que torceram por mim e me apoiaram nesse demorado processo seletivo)


Por mais chocante e provocadora que uma proposta auto-intitulada “anarquista” seja, pode ser interessante levar a sério os argumentos históricos e epistemológicos levantados por Paul Feyerabend para afirmar a impossibilidade de um método que garanta de antemão uma verdade objetiva.

A defesa deste ponto de vista parte tanto de 1) uma análise da história das ciências naturais quanto de 2) uma acurada crítica aos modelos de racionalidade científica propostos tanto pelo positivismo lógico quanto pelo falsificacionismo de Popper.

A primeira tem caráter mais simples. Basta recorrer, por exemplo, à narrativa da mudança do paradigma[1] aristotélico-ptolomaico para o copernicanismo de Galileu[2]. A troca paradigmática não foi necessariamente um avanço, pois retomou a concepção pitagórica de movimento da Terra. Muito menos aparece como uma ampliação do conhecimento, tal qual sugere os modelos empiristas. Ora, o natural segundo os falsificacionistas seria que um modelo falho deveria ser abandonado em favor de um mais consistente. O modelo pitagórico deveria, em tese, ter sido abandonado. Galileu, entretanto, preferiu um sistema menos coerente com os fatos no que diz respeito ao movimento da terra mostrando como esses mesmos fatos observáveis poderiam ser interpretados relativisticamente. O caso Galileu mostra que o desenvolvimento da ciência não segue nem os padrões exigidos pelo empirismo e nem corresponde ao modelo falsificacionista. O exemplo, largamente discutido por Feyerabend, aponta para a necessidade de uma nova teoria não só apresentar fatos novos, mas também uma nova linguagem observacional. Assim, a história das ciências naturais desabona os modelos neo-positivistas e os falsificacionistas.

A segunda crítica é mais pungente. A obrigatoriedade do empirismo de confrontar as teorias com os fatos observáveis tem contra si a dificuldade de que os próprios fatos estão impregnados de teorias, algumas das quais desconhecidas. Segundo Feyerabend,

“Fatos e teorias estão muito mais intimamente ligados do que o admite o princípio de autonomia [dos fatos]. Não apenas é a descrição de cada fato individual dependente de alguma teoria (a qual pode, é claro, ser muito diferente da teoria a ser testada), mas também existem fatos que não podem ser revelados, exceto com o auxílio de alternativas à teoria a ser testada e deixam de estar disponíveis tão logo tais alternativas sejam excluídas”.[3]


Com esse argumento, Feyerabend explica porque teorias antigas e hipóteses que pareçam absurdas de início não devem ser abandonadas sem serem seriamente examinadas. Uma vez que existem falhas e que praticamente nenhuma teoria é consistente com os fatos, é irracional aceitar o falseacionismo. Isso nos deixaria sem teoria nenhuma:

“De acordo com nossos resultados atuais, praticamente nenhuma teoria é consistente com os fatos. A exigência de admitir apenas teorias que sejam consistentes com os fatos disponíveis e aceitos deixa-nos, mais uma vez, sem teoria alguma (...). Conseqüentemente, uma ciência tal como a conhecemos pode existir só se abandonarmos também essa exigência e mais uma vez revisarmos nossa metodologia, admitindo a contra-indução, além de hipóteses não-fundadas. O método correto não deve conter nenhuma regra que nos faça escolher entre teorias com base no falseamento”. [4]

Levando isso em consideração, torna-se bem plausível a tese de que se o cientista se pautar pelo seguimento estrito dos métodos pré-aprovados como científicos, não haverá avanço no conhecimento. Se as teorias novas são julgadas pelas antigas, como decidir pela nova, mesmo se essa for melhor que a mais considerada? E neste caso, qual o critério para estabelecer a melhor teoria?

É aqui que se coloca o problema do avanço do conhecimento científico. E é em torno desse problema que desejamos pesquisar. Feyerabend quer uma ciência não falseacionista, pois tal procedimento excluiria teorias anteriores que, como já foi dito, são necessárias para revelar teorias implícitas na linguagem observacional, ou mesmo porque podem ser retomadas e apresentar uma nova abordagem (lembremo-nos do caso Galileu). O que, então, o filósofo sugere quando prega uma metodologia “pluralista”?

Para o autor de Contra o método, é preciso tempo para que uma nova proposta teórica comece a fazer sentido e a coerência dependerá de novos fatos e de hipóteses e aproximações ad hoc, não podendo ser medida pela teoria dominante, muito menos pela linguagem da tradição dominante[5].

A hipótese desse trabalho é que Feyerabend coloca para os historiadores e filósofos da ciência um problema de envergadura semelhante à que David Hume lançou em seu tempo. O filósofo escocês colocou em cheque a relação necessária entre causa e efeito nas questões de fato e, com isso, relativizou a indução, revelando o quanto há de crença e força do hábito nesse processo.

Paul Feyerabend argumenta não só contra o método empirista como também contra o método que tentou escapar ao problema da indução colocado por Hume: o racionalismo crítico. Além disso, mostra a incomensurabilidade entre os padrões antigos e novos de construção do conhecimento, e como nossa linguagem observacional já é em si mesma teórica (há crenças, ideologias, preferências e tendências teóricas encobertas). Por isso opta por uma ciência com métodos plurais, cujas teorias se desenvolvam por partes muitas vezes desiguais, necessitando de teorias complementares ad hoc e tempo para acomodar a nova linguagem. Sua filosofia pluralista das ciências retira a suposta autoridade da racionalidade e da cientificidade, agora entendidas como meras tradições sem vínculo necessário com uma verdade objetiva.

Por isso mesmo é que o autor discute a pretensão de que o atual estágio do conhecimento científico seja mais correto do que o de outras tradições não-científicas. Dessa forma, Feyerabend quer abrir a possibilidade de um diálogo democrático entre os cientistas e os demais membros da sociedade. É um desejo de uma ciência livre, mas também de uma sociedade livre do perigo de uma “tirania” científica.

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[1] O termo paradigma é discutido amplamente por T. Kuhn (cf. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 9.ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 30). Feyerabend compartilha com esse autor a visão de que a ciência é produto histórico e inclusive utiliza-se da noção de paradigma científico. Sua postura diverge, no entanto de Kuhn com relação à necessidade de amarrar a história com teorias. Feyerabend prefere não submeter-se a limites rígidos de um sistema conceitual. (cf. FEYERABEND, Paul. Contra o método. São Paulo: Ed. UNESP, 2007 p. 59)

[2] Feyerabend dedica nada menos que 9 capítulos de Contra o método para mostrar a argumentação de Galileu em favor de seu modelo cosmológico através de artimanhas, apelo a analogias e apego a uma teoria inconsistente com os fatos unicamente por causa de sua racionalidade. Um diagrama da mudança paradigmática em que os mesmos fatos são usados para confirmar tanto o paradigma anterior quanto a proposta galileana pode ser conferido em FEYERABEND, Paul. Contra o método p. 109
[3] FEYERABEND, Paul. Contra o método. pp. 54-55 (grifos do autor)
[4] Idem p 85
[5] Feyerabend fala de um movimento de recuo, da necessidade de tornar nesse primeiro momento a nova teoria mais metafísica: “Esse movimento de recuo não é apenas um acidente; ele tem uma função definida; é essencial se quisermos alcançar os ‘status quo`, pois nos dá tempo e liberdade necessários para desenvolver a concepção principal em detalhe e para encontrar as ciências auxiliares necessárias”. FEYERABEND, Paul. Contra o método, p. 166.

12 novembro 2008

Do desejo e da necessidade



Tive oportunidade de escrever muito brevemente sobre essas duas coisas: necessidade e desejo. [1] Mas um recente diálogo com uma amiga me despertou para aprofundar nesse tema. Vou situar a conversa para que o leitor entenda melhor o que quero dizer.

Eu estava comentando sobre minha vontade de comprar um carro (não que eu tenha dinheiro para tal), falando de como esse objeto poderia facilitar a minha vida. Moro numa capital, preciso me deslocar por grandes distâncias e depender de ônibus em Belo Horizonte é uma coisa que só os habitantes dessa cidade sabem como é triste. Nada de mais até então. Até então, repito...

Quando disse que pensava num modelo ano 2000, popular, minha amiga teve uma clara decepção e disse preferir juntar dinheiro para comprar um carro esportivo do ano. Estávamos num barzinho e, bem, esse não é um lugar para discutir diferenças pessoais, não é mesmo?

O fato é que essa conversa rendeu-me uma reflexão: onde residia de fato a diferença de opinião entre minha amiga e eu? Por que ela se decepcionou de saber que eu não queria um carrão esporte, mas um popular usado? Afinal voltei a reflexão para a distinção entre necessidade e desejo.

Meu problema de locomoção se resolve com um carro (qualquer um). Em outras palavras, trata-se da necessidade de deslocamento rápido e de evitar perda de tempo e atrasos. Não necessito de um EcoSport, mas de um carro. Aqui encontro talvez uma diferença entre meu modo de pensar e o de minha amiga.

No artigo em que escrevi sobre a temperança, falei de necessidade como fome e sede. Mas nem só de pão vive o homem...

Além da fome e da sede, que são evidentemente necessidades básicas, há um elemento chamado desejo. E o desejo desperta em nós uma atração irresistível para um objeto que parece nos prometer mais do que ele mesmo é. Acho que essa é uma boa definição de desejo: uma promessa na qual acreditamos e que, porém, nunca será cumprida. É o paradoxo do qual Freud já falava em seus escritos: nossas pulsões provêm de uma fonte inesgotável e nunca serão saciadas inteiramente, só simbolicamente através de mecanismos sutis ou sublimadas em um esforço de transcendê-las.

A grande questão é que pouquíssimas pessoas têm força de vontade e grandeza de caráter o suficiente para tentar a via da sublimação. Então nossos esforços voltam-se para a realização incompleta dos nossos desejos através dos vários objetos que nos prometem uma parcela de felicidade.

Acredito que o maior erro de Karl Marx foi ter pensado que os seres humanos ficariam felizes com a satisfação das necessidades. Que as pessoas se contentariam com uma sociedade sem fome, sem carências materiais, sem classes sociais. Pois o socialismo idealizado por esse pensador visava acabar com a carência material e a desigualdade social. Falando abertamente, o Comunismo se voltava para a necessidade dos seres humanos inseridos nesse sistema econômico. O erro aí foi desprezar a força do desejo.

O Capitalismo, ao contrário, mesmo criando um fosso colossal entre ricos e miseráveis, e dependendo da exploração das massas para sua manutenção, focou-se no ponto fraco do ser humano: o desejo. Esse sistema econômico tem uma capacidade enorme de transformar desejos em necessidades. Por via da propaganda, da ostentação e da moda, muitos produtos acessórios tornam-se “obrigatórios”. Aquilo que até ontem nem existia passa a ser o objeto de urgência de hoje. E nós nem nos damos conta desse processo, dessa manipulação do nosso desejo.

É que o capitalismo trabalha o simbólico, mais do que com o útil. E o simbólico mexe com estruturas internas do ser humano, tal como a religião e a arte. Marx chamou a isso “fetiche da mercadoria”. Passamos então para um último item dessa reflexão: o consumo.

O consumo é o meio pelo qual o capitalismo se sustenta. Poderíamos falar que é o detalhe mais importante desse modo de produção. Toda crise no capitalismo é também uma crise de consumo.


Pois bem, todos os produtos são criados para serem consumidos. Caso não sejam consumidos, o marketing incumbe-se de criar a sensação da necessidade desses produtos nos consumidores. Depois de consumidos, o mercado realiza outra façanha: torna os produtos já consumidos rapidamente obsoletos. Nesse sentido entra o papel imprescindível da moda e da estética. Nem é preciso que o produto se degenere, a mudança na aparência das mercadorias causa a impressão de que as compras do semestre passado são do tempo das cavernas. Basta repararmos como os computadores se desatualizam rapidamente (a tela plana faz o monitor comum parecer uma máquina de escrever).

Sendo assim, fazemos a seguinte pergunta: se o desejo é de tal forma infinito, é possível escapar do consumismo a que ele nos direciona? Eu tenho a tese otimista que sim, é possível! É claro que o leitor vai me perguntar como...Respondo: com um pouco de racionalidade. Simples assim? Não, de modo nenhum é simples. Demandaria refletir sobre o que é necessário, o que é útil e o que é simplesmente produto dos caprichos do desejo. Seria preciso rever nosso padrão de consumo. Seria igualmente preciso entender as conseqüências do consumismo para nosso planeta desde a extração de matéria-prima, passando pela produção em escalas absurdas (com a poluição que advém dessa produção), até o problema do lixo e dos aterros sanitários.

Por fim, gostaria de sugerir um vídeo inspirador sobre essas questões. Intitula-se “A história das coisas” e fala de todo esse processo cujo principal elo é o consumo: http://www.unichem.com.br/videos.php (esse vídeo ficou melhor no link do que no youtube)

30 setembro 2008

Entrevista com Eric Hobsbawn

Abro o espaço deste blog (que originalmente foi criado para divulgar meus próprios textos) para uma entrevista publicada na Agência Carta Maior.

Eric Hobsbawn é historiador, autor de diversas obras de referência como "A era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991" (1994). Na entrevista ele fala da importância de Marx diante da crise econômica americana.

Segue o link: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15253&boletim_id=461&componente_id=8222

17 setembro 2008

FRANCISCO: ÍCONE DE UMA ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICA

É difícil haver alguém que discorde da urgência da questão ecológica. No entanto, é igualmente difícil acreditar que o quadro atual do aquecimento global vai mudar somente com a divulgação de relatórios científicos e chamadas ecológicas nos intervalos comerciais de televisão. Muito mais necessário é o surgimento de uma verdadeira espiritualidade ecológica, entendendo-se por espiritualidade uma motivação que atinja a totalidade das dimensões humanas.
Neste sentido, um grande exemplo que o ocidente conheceu e que a própria Igreja pode propor como modelo de vida integrada por uma espiritualidade cósmica é a figura de São Francisco de Assis.

O irmão de Assis rejeitou um modelo religioso apartado das criaturas. Ao ser-lhe proposto uma das regras monásticas já consagradas (de Bento ou de Agostinho), Francisco insistiu que queria ser “um novo louco no mundo”. Ao contrário, viveu a alegria de estar entre homens, dos maiores aos menores, também animais, pedras, rios, plantas. Nada para ele poderia ser obstáculo para o encontro com o Altíssimo, mas recebia o caráter de sacramento: toda criatura tinha o rastro do Criador, tudo carrega a beleza e a bondade pelo simples fato de existir.

São Boaventura, na biografia que escreveu sobre São Francisco, fala sobre essa intuição: “Repleto também de piedade mais copiosa pela consideração da origem de todas as coisas, chamava as criaturas, por mais pequeninas que fossem, com os nomes de irmão e de irmã, pelo fato de que sabia que elas tinham com ele um único princípio”. (Legenda Maior VIII, 6).

Francisco, portanto, viveu um re-encantamento da natureza, capaz de intuir muito além de uma dominação utilitária. As criaturas têm uma dimensão sagrada por constituírem pegadas do Sumo Bem. Os bens naturais são irmãos e irmãs nossos.

O segredo de São Francisco não está somente em ser irmão, mas em acrescentar o adjetivo “menor” em sua fraternidade. Não quer ser um irmão mais velho, herdeiro e dominador. Quer ser um irmãozinho, irmão menor.
A confraternização de Francisco com todas as coisas passava pelos leprosos, pelos bispos e malfeitores, pelos esquecidos e pecadores, pelos príncipes e ladrões, como também pela natureza e cada criatura particularmente. Concretamente “ser menor” significa deixar que o outro seja. Amar todas as criaturas pelo que elas são em si mesmas.

Por isso os biógrafos de São Francisco podem relatar a proibição aos seus frades de cortar as árvores pela raiz, na esperança de brotarem novamente. Contam também que o santo mandava os hortelãos deixarem um canto para as ervas daninhas e que cultivassem um canteiro de flores e ervas aromáticas.

Outra característica da espiritualidade fraternal de Francisco está no modo de vida pobre. A virtude da pobreza é fundamental para a preservação do planeta: não se apropriar de nada, mas reconhecer o valor de cada criatura. Deixar que as coisas sejam, renunciando submeter os bens naturais aos interesses do lucro, da satisfação própria, da propriedade privada, da exploração, da injustiça, do pecado. Segundo Leonardo Boff,

A posse cria obstáculos à comunicação entre as pessoas e com a natureza, porque pela posse dizemos sempre ‘isto é meu’, ‘aquilo é teu’ e assim nos dividimos. Ela representa os inter-esses humanos, vale dizer, aquilo que se inter-põe entre as pessoas e a natureza. Quanto mais radical, mais a pobreza aproxima o ser humano da realidade nua e crua; mais lhe permite uma experiência global de comunhão sem distância, no respeito e na reverência da alteridade e da diferença. A fraternidade universal resulta desta prática de pobreza essencial. Não colocar obstáculos entre nós e todas as coisas (inter-esse).[1]

Poverello, amplia os horizontes do eu numa grande irmanação cósmica. O seu cântico do irmão sol, síntese de mística e poesia, foi composto quando Francisco estava cego, sofrendo fortes dores corporais, dois anos antes da sua morte. Nessa poesia, haverá um espaço para louvar a reconciliação que concretamente se realizou entre o prefeito e o bispo de Assis, e ainda para uma fraternidade radical, que reconhece a própria morte como irmã. É esse mesmo cântico que Francisco pede para os seus frades entoarem com ele no seu leito de morte:

Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
teus são o louvor, a glória e a honra e toda bênção
Somente a ti, ó Altíssimo, eles convém,
e homem algum é digno de mencionar-te.
Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas,
especialmente o senhor irmão sol,
o qual é dia, e por ele nos iluminas.
E ele é belo e radiante com grande esplendor,
de ti, Altíssimo, traz o significado.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e pelas estrelas,
no céu as formaste claras preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento,
e pelo ar e pelas nuvens e pelo sereno e todo tempo,
pelo qual às tuas criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água
que é muito útil e humilde e preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo
pelo qual iluminas a noite
e ele é belo e agradável e robusto e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a mãe terra
que nos sustenta e governa
e produz diversos frutos com coloridas flores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam pelo teu amor,
e suportam enfermidade e tribulação.
Bem-aventurados aqueles que as suportarem em paz
porque por ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a morte corporal,
da qual nenhum homem vivente pode escapar.
Ai daqueles que morrerem em pecado mortal:
bem-aventurados os que ela encontrar na tua santíssima vontade,
porque a morte segunda não lhes fará mal.
Louvai e bendizei o meu Senhor
e rendei-lhe graças e servi-o com grande humildade.


Portanto, em São Francisco, encontramos não só uma ecologia exterior, mas uma ecologia interior, que reconcilia e festeja o Criador e as criaturas, o masculino e o feminino, os seres humanos entre si e com a morte. Sem essa ecologia interior o planeta ameaçado vai continuar sendo apenas uma notícia alarmante, uma conseqüência daquilo que os outros fizeram e nunca um grito que nos afete. Sem afeto, envolvimento, não poderemos salvar nossa casa, a mãe terra.

E se o mesmo ocidente, que tanto destruiu e criou sistemas injustificáveis conseguiu gerar uma personalidade tão fraterna e universal como São Francisco, significa que não é impossível uma mudança de rumos, precedida por uma mudança paradigmática da dominação para a irmanação cósmica.


[1] BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres: Dignitas Terrae. São Paulo: Atica, 1995. p 327.
* A imagem reproduzida é um detalhe dos afrescos de Giotto na Basílica de Sao Francisco em Assis

20 junho 2008

A temperança ontem e hoje



1.Uma aproximação do conceito de virtude
O discurso sobre virtudes na sociedade contemporânea parece desgastado e sem força de penetração. Muitas vezes na história entenderam-se as virtudes num sentido moral de dever, de atos pré-admitidos como bons em si, e cuja prática seria desejável em vista de uma retidão de caráter e uma santidade de vida.

Identificar as virtudes apenas com atos heróicos isolados parece reduzir o verdadeiro significado que elas podem ter para as mulheres e homens hodiernos.

Virtude é um termo latino (de virtus, vir) cuja semântica remonta ao homem, à força. Mas virtus é a tradução do grego areté. Na concepção clássica grega, areté corresponde a excelência e relaciona-se com a realização última do ser humano. Trata-se de alcançar a vida desejável, a vida boa (eudaimonia). Só pode ter uma vida boa o homem de excelência, virtuoso.

Não é o caso de praticar as virtudes, mas de ser virtuoso. Poderíamos falar até mesmo de um “círculo virtuoso”: só o homem virtuoso age com virtude, e o hábito da virtude torna o homem virtuoso. Areté é, portando uma disposição para o bem, que permite que o ser humano tenha condições de escolher o melhor e realiza-lo. Em termos aristotélicos, corresponderia ao intermédio entre a potência e o ato, entre o querer e o agir bem. O hábito constante da virtude predispõe o homem para desejar o melhor, inclina-o (potência) em direção ao bem maior para todos (e assim ao melhor pra si mesmo). E a disposição para o bem faz com que o homem aja (ato) com virtude.

A eudaimonia seria o fim último (telos) do agir humano. No mundo antigo a eudaimonia era indissociável da vida pública. Só era possível viver a vida boa dentro da polis, em sociedade. O homem virtuoso é que compõe a cidade virtuosa. Querer e agir no sentido do bem da cidade é querer e agir em prol da própria felicidade.

Nesse sentido, o discurso das virtudes permanece bem atual. Pois a identificação de felicidade com a mera realização das vontades individuais vem mostrando-se um falacioso discurso, que apesar de apregoado por todos os lados pela mídia, pelo relativismo moral e até mesmo por grupos religiosos contemporâneos, torna-se insustentável.

Além do mais, percebe-se que a virtude diz menos a respeito de ações pontuais do que ao ser humano em sua totalidade. Ser virtuoso é, dizendo de modo muito simples, humanizar-se, tornar-se humano, realizar-se. E aqui é preciso concordar com Aristóteles, para quem só pode possuir uma virtude aquele que possui a todas.

Em sua Ética a Nicômaco, o filósofo estagirita cita quatro virtudes que devem compor o cidadão, e que ficaram conhecidas desde a Idade Média como virtudes cardeais. São elas a Prudência, a Coragem, a Temperança e a Justiça. O conceito aristotélico de virtude é sempre o meio termo entre dois vícios, entre dois extremos. É a própria aplicação da justiça nos campos da razão (prudência), do instinto (coragem) e do desejo (temperança). Essa justa medida é que equilibra o ser humano, que o torna humano, e que o evita ser dominado por um aspecto limitador e desequilibrado de sua vida.

Nossa proposta é refletir sobre a virtude da temperança. O que devemos fazer sem perder de vista a unidade de todas as virtudes e a necessidade de atualização para que este trabalho não seja apenas um debruçar-se sobre concepções históricas ultrapassadas.

2. A temperança em Aristóteles

Segundo o autor de Ética a Nicômaco, a temperança é o meio termo entre a intemperança e a insensibilidade e refere-se aos prazeres e dores (mas predominantemente aos prazeres). Aristóteles reconhece que há pouquíssimos que podem ser deficientes no tocante aos prazeres, por isso não têm um nome específico. A esses o filósofo nomeou insensíveis. O excesso na busca dos prazeres corresponde à intemperança. Assim nos diz Aristóteles:

“Com relação aos prazeres e dores – não todos, e menos no que tange às dores – o meio termo é a temperança e o excesso é a intemperança. Pessoas com dificuldades no tocante aos prazeres não são muito encontradiças, e por este motivo não receberam nome; chamemo-los, porém, ‘insensíveis’”.[1]

A temperança e a intemperança dizem respeito, portanto, àqueles tipos de prazeres mais básicos e naturais não apenas no ser humano, mas em todos os animais, a saber, o tato e o paladar. A intemperança tende, dessa forma, a dominar o ser humano como animal. Nas palavras de Aristóteles,

“A temperança a intemperança relacionam-se com a espécie de prazeres que é compartilhada pelos outros animais, e que por esse motivo parecem inferiores e brutais; são eles os prazeres do tato e do paladar”.[2]

Enquanto o excesso do prazer parece reduzir o ser humano ao estado animal, a insensibilidade parece, ao discípulo de Platão, algo tão raro que faz do insensível algo diferente de um homem.

O temperante, ao contrário, é o meio termo entre o insensível e o intemperante. Não deseja o que não deve, não sofre mais do que deve pela falta desses objetos, e deseja moderadamente pelas coisas agradáveis, úteis e não contraditórias com o que é nobre.

Trata-se, evidentemente, do desejo moderado, equilibrado, justo. De não ser escravo dos desejos, de contentar-se com o que é suficiente e não sofrer por causa dos desejos insaciados.

Para Aristóteles, parece loucura sofrer por prazer. O intemperante acaba por sofrer duplamente: por não conseguir o que deseja e pelo anseio do próprio apetite imoderado:

“O intemperante, pois, almeja todas as coisas agradáveis ou as que mais o são, e é levado pelo seu apetite a escolhê-las a qualquer custo; por isso sofre não apenas quando não os consegue, mas também quando simplesmente anseia por elas (pois o apetite é doloroso). No entanto, parece absurdo sofrer por causa do prazer”.[3]

A temperança relaciona-se muito particularmente com um outro conceito grego muito caro e necessário para se levar uma vida boa: a autarkéia, ou auto-suficiência. Autarkéia é aquilo que torna a vida desejável e carente de nada. [4]

Parece-nos que essa independência, essa auto-suficiência, pode mediar a atualização da virtude da temperança para o homem e a mulher contemporânea. Esse anseio de liberdade que vivemos só pode ser real se os nossos desejos também forem livres. Vejamos agora o que um autor contemporâneo tem a dizer sobre temperança.

3. A temperança em André Comte-Sponville

Comte-Sponville é um filósofo francês e ateu confesso, o que permite ver sua leitura das virtudes de forma menos carregada de preceitos religiosos (apesar de conhecermos sua simpatia declarada pelo budismo). Por isso mesmo é uma visão interessante, mais conforme a mentalidade secular atual.

Em primeiro lugar, chama a atenção o fato de que o autor tenha escrito um “Pequeno tratado das grandes virtudes”. Além do mais, surpreende que a temperança esteja incluída no meio dessas “grandes virtudes”.

A temperança para Comte-Sponville não é a proibição do prazer. Mas refere-se justamente ao desfrute livre dos prazeres. Livre porque moderado. Mais uma vez remonta-se à autarkéia. A temperança permite que se desfrute melhor de tudo porque é um desfrutar livre, porque a moderação nos torna senhores e não escravos do prazer. Assim, além do desfrute do prazer, há também o desfrute da liberdade:

“A temperança é essa moderação pela qual permanecemos senhores de nossos prazeres, em vez de escravos. É o desfrutar livre, e que, por isso, desfruta melhor ainda, pois desfruta também sua própria liberdade”. [5]

André Comte-Sponville coloca todo o mérito da temperança nessa capacidade de fazer com que o temperante possa controlar seu desejo e não ser controlado por ele. Nesse sentido os exemplos levantados pelo autor são ilustrativos: poder fumar quando se pode parar, poder beber sem ser dependente do álcool, poder fazer amor sem se tornar escravo do desejo.

O que faz da temperança uma virtude é justamente o fato de que esse equilíbrio entre o desejo e a liberdade é difícil, possível para alguns e impossível para muitos.

Nessa relação entre temperança e autarkéia (traduzida no texto por independência), o filósofo francês cita Epicuro:

“Vemos a independência como um grande bem, não, em absoluto, para que vivamos de pouco, mas a fim de que, se não temos muito, nos contentemos com pouco, persuadidos de que os que menos necessitam da abundância a desfrutam com maior prazer, e de que tudo o que é natural é fácil de conseguir, mas o que é vão é difícil de obter”.[6]

Dessa forma, André Comte-Sponville concorda com Epicuro: as necessidades básicas (fome, sede e sexo) são mais fáceis de saciar. O problema se mostra na maneira como o intemperante é dominado pelo seu desejo: se não tem mais fome, provoca vômito para comer mais; se não quer mais sexo, procura a pornografia para atiçar o desejo novamente. É como se o intemperante precisasse sentir o desejo o tempo todo e sua satisfação fosse a tortura, quer sempre mais e nem o excesso o sacia.

Com razão, o filósofo francês lembra que a temperança não é a virtude mais excepcional. É uma virtude comum diante das demais, mas a dificuldade reside no objeto da mesma, que são os desejos mais necessários (comida, bebida e sexo) e, por isso, mais indomáveis.

4. Concluindo


Gostaríamos de trazer presente a música do grupo Titãs, intitulada “Comida” (Arnaldo Antunes/Sérgio Brito/Marcelo Fromer). Nela fala-se de “fome de” e “sede de”[7] numa distinção interessante entre desejo e necessidade. A necessidade é obviamente de comida e bebida, mas o desejo é direcionado para um prato específico e um “drink” daquela bebida determinada. Saciar as necessidades fisiológicas é tarefa simples. Contentar-se com a comida, a bebida e as relações que se têm é o que demanda temperança.

A intemperança nesses casos é geradora de dor, de angústia e insatisfação. Uma vez que, segundo Freud, as pulsões são uma fonte infinita, é preciso que haja um regulador do desejo para evitar a tragédia da sensação de eterna insatisfação, de eterna infelicidade. Quer chamemos esse regulador de temperança ou de independência frente aos desejos, o certo é que sem essa moderação o projeto antigo da eudaimonia fada-se ao fracasso. Por fim, convém ressaltar que a temperança é também uma virtude para os tempos modernos. Vivemos numa sociedade de consumo, carregada por excessos. Temperar esses excessos constitui uma tarefa necessária para o próprio bem da humanidade.

O exagero causa problemas ecológicos, como a devastação da natureza e a produção de grande quantidade de lixo. O capitalismo tenta fazer-nos acreditar que nossos desejos são verdadeiras necessidades. Tal ideologia gera consumo exagerado e o consumo gera mais problemas ecológicos e sociais. Além disso, a intemperança no alimentar-se causa obesidade ou anorexia. O excesso do consumo de bebida e fumo pode gerar dependência. Em relação aos prazeres sexuais o exagero pode fazer aparecerem fixações psíquicas.

Assim, não é de modo algum antiquado falar de temperança. Pois recomendar temperança é falar da própria liberdade frente aos desejos. Então essa virtude é necessária para aproveitar a vida com sabedoria e, por isso, aproveitar melhor, alcançando a realização final: ser humano plenamente.

BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco Poética. 4. São Paulo: Nova Cultural, 1987/1991. (Os Pensadores).

COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude: um estudo em teoria moral. Bauru: EDUSC, 2001.(Filosofia e política).

MAGNAVITA, Alexey Dodsworth. A felicidade além do princípio do prazer. Discutindo filosofia. São Paulo: Escala editorial, v.2, n.11, mar. 2008.


Notas:




[1] ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco.p. 34
[2] Idem p. 56
[3] Idem p. 57
[4] Cf. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. p. 15. Neste trecho é possível entender o conceito aristotélico de autarkéia: “(...)por ora definimos a auto-suficiência como sendo aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável e carente de nada. Não foram só os clássicos que buscaram essa auto-suficiência. A modernidade iluminista também procurou tratar da autarkéia no sentido de autonomia, esclarecimento (Aufklãrung), saída da menoridade, pensar por si mesmo. Para um maior aprofundamento, ver o conhecido texto de KANT. O que é esclarecimento?
[5] COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes viturdes. p. 46
[6] EPICURO citado por COMTE-SPONVILLE, André. op. cit. p. 46
[7] “Bebida é água, comida é pasto. Você tem sede de quê? Você tem fome de quê?”

13 maio 2008

O PLURALISMO RELIGIOSO EM QUESTÃO

- Contribuições de Rahner, Küng e Hick para o diálogo inter-religioso -
COLOCAÇÃO DO PROBLEMA

O adágio patrístico “extra ecclesiam nulla salus” fora originalmente criado para reconciliar os cristãos que durante a perseguição romana renegaram a fé e, arrependidos, pediam sua reintegração à comunidade religiosa. Tardiamente a frase foi descontextualizada a ponto de ser formalmente definida no IV Concílio de Latrão (1215) com o significado de uma exclusividade dos meios da salvação à Igreja Cristã.
De fato, durante o período da Cristandade, a Igreja identificava sua existência como vontade divina e sua instituição equivocadamente confundia-se com o próprio Reino de Deus na terra. Como as esferas religiosa e política se confundiam, era natural pensar que o mundo devia ser literalmente conquistado para a “verdade” cristã.
O contato com o oriente e com suas religiões e, posteriormente, com o novo mundo das Américas levantava questões urgentes: como fica a salvação de tão grande parcela da humanidade? Muitos missionários surgiram pelo zelo da tarefa de tornar a “Verdade” conhecida desses povos. A convicção de que a salvação só é possível na Igreja também justificava cruzadas, guerras, anexações territoriais, imposição do batismo e todo tipo de atrocidade cometida em nome de Deus.
O processo de secularização iniciado na modernidade ganhou em maior ou menor grau todo o ocidente “cristianizado”, instaurando uma separação entre Igreja e Estado, o fim do monopólio religioso da Igreja Católica, uma confiança na autonomia da razão. A partir desse momento da história, a voz do Catolicismo deixou de ser a legítima autoridade que fala em nome de Deus, e passou a ser apenas mais uma voz apagada concorrendo com tantas outras vozes que falam ao ser humano hoje. Em nome da laicidade dos estados, é permitida a prática de qualquer religião no território desses países e os fiéis de várias tradições religiosas precisam conviver, compartilhar ambientes de trabalho, estudo e lazer. Cristãos de diversos ramos e não-cristãos vivem problemas comuns e buscam soluções que contemplem a todos.
Torna-se óbvio que nesse novo contexto, não é possível manter a mesma resposta para o problema do ecumenismo e da salvação dos não-cristãos. É justamente a questão da salvação nas religiões que vai ser discutida a partir da teologia pluralista atual. Tais são as perguntas que demandam uma resposta: Cristo é necessário para a salvação da humanidade? A salvação passa apenas por Cristo? As religiões são caminhos de salvação? Essa salvação ocorre em Cristo ou por meio das práticas religiosas sugeridas por aquela tradição religiosa? A pluralidade de religiões faz parte do desejo de Deus ou são apenas preparação para o Cristianismo?
Dependendo das respostas dadas a tais questões vão se delineando posições mais ou menos abertas, ou mais ou menos fechadas para o pluralismo e o diálogo inter-religioso. E é claro que, conforme as soluções apresentadas, muitos dos dogmas cristãos precisam ser repensados, o que torna essa tarefa mais desafiante.
Podemos citar quatro posturas que refletem o quanto ainda é preciso caminhar nesse campo:
1) Exclusivista – é a postura tradicional, limita a salvação somente aos batizados.
2) Inclusivista fechada – reconhece elementos cristãos nas outras tradições e, portanto, a salvação por participação, mas a plenitude da salvação só ocorre dentro do Cristianismo Católico;
3) Inclusivista aberta – Avança na postura anterior. Considera o evento Cristo fundamental, com valor de salvação universal, não só para os Cristãos que o professam, mas todos seres humanos de todas religiões. Estas conservam seu valor próprio.
4) Pluralista – Entende que as várias tradições religiosas são desejo de Deus e plenos caminhos de salvação, não necessitando da mediação de Cristo.

Neste trabalho veremos a solução de dois inclusivistas abertos e um pluralista. Os motivos para tal escolha configuram no fato de que tanto no exclusivismo quanto no inclusivismo fechado não há possibilidade de diálogo de igual para igual entre religiões não-cristãs e a religião cristã.
1 - A TEORIA DOS CRISTÃOS ANÔNIMOS
A tarefa de reconciliação da Igreja com a modernidade foi empreendida pelo Concílio Vaticano II, nos anos 60. Os documentos do Concílio falam de “sementes do Verbo” espalhadas nas culturas. A nova postura de abertura e diálogo passa a reconhecer o valor das tradições culturais e a presença escondida de Cristo nelas.
A teologia do Concílio, apesar de ainda permanecer numa penumbra de inclusivismo fechado foi enormemente influenciada por um grande teólogo alemão: Karl Rahner.
Rahner admite, com uma linguagem kantiana, que o ser humano tem as condições de possibilidade de acolher a revelação divina. Em outras palavras, a antropologia rahneriana é positiva em relação à salvação de todo ser humano. Ele admite que o ser humano foi criado com essas condições transcendentais, como uma oferta divina, o chamado “existencial sobrenatural”.
Esse “existencial sobrenatural” de que fala Rahner permite que a pessoa acolha a proposta salvífica dentro de sua história concreta, mesmo não sabendo nomeá-la. Rahner chama essa experiência de conhecimento anônimo e atemático de Deus.
Como, para Rahner, a história salvífica coexiste com a história humana de maneira inseparável, fica claro que o desejo de Deus é a salvação universal. Nessa história humana, que é também divina, Jesus Cristo é a máxima auto-comunicação de Deus ao homem, e o cristianismo é a memória desse acontecimento.
Apesar de ser passível de críticas, essa postura de Rahner tentava salvaguardar os dogmas da Igreja Católica, assumindo positivamente toda experiência humana, inclusive a posição do ateísmo, uma vez que a acolhida para o projeto salvífico pode ser atemático:

"Também aquele que em sua consciência verbalmente objetivante não pensa explicitamente em Deus ou estima dever refutar um tal conceito como contraditório, tem sempre e inevitavelmente o que fazer com Deus na sua consciência profana. E o acolhe atematicamente como Deus no momento em que acolhe a si mesmo livremente em sua própria transcendentalidade ilimitada".[1]

Como já foi referido anteriormente, no pensamento de Karl Rahner a pessoa de Jesus Cristo é a máxima expressão da comunicação divina. Sendo assim, o Cristianismo torna-se o acabamento de todas as religiões e não é possível falar de salvação sem referir-se a Cristo.
É dentro desse esquema conceitual que surge a expressão rahneriana de “cristãos anônimos”, segundo a qual, nas palavras de Faustino Teixeira,

"não é o fato de alguém se encontrar fora do perímetro de ação da Igreja ou das Igrejas cristãs, e de sua mensagem evangelizadora, que determina a dinâmica negativa de sua relação com o mistério salvífico, mas o exercício da fé, da esperança e da caridade, que se realiza sempre na atmosfera da graça de Jesus Cristo".[2]

A teoria dos cristãos anônimos inclui, portanto, na dinâmica da salvação, todos os que praticam as virtudes teologais, mesmo não assumindo explicitamente o cristianismo como sua religião.
Essa posição, que hoje parece comumente aceita inclusive pelos fiéis leigos, foi um avanço dentro da época em que foi apresentada e causou reações dentro do quadro dos teólogos mais tradicionais. Isso obrigou Rahner a explicitar a distinção da qualidade da mediação de Cristo entre o cristianismo anônimo e o cristianismo professado. Dessa forma, o autor se viu forçado a dizer de maneira clara a importância da Igreja e da evangelização no plano da salvação, já que a preocupação dos teólogos era que tanto Igreja quanto a evangelização missionária perderiam sentido com a tese dos cristãos anônimos.
O fato é que, mesmo sendo uma postura avançada para aquele momento histórico específico, a teoria do cristianismo anônimo mereceu muitas críticas dos teólogos do pluralismo religioso. A principal delas é a de que, como a própria terminologia indica, Rahner coloca todas as demais experiências religiosas subordinadas ao cristianismo, e “obriga” os não-cristãos a acolherem uma posição religiosa contra a sua vontade e especificidade. Os próximos teólogos a serem estudados apresentarão suas próprias críticas ao cristianismo anônimo.
2 - A CRITERIOLOGIA ECUMÊNICA DE HANS KÜNG

O teólogo suíço Hans Küng (1928 - ) empreende a tarefa de apresentar critérios ecumênicos (universais) de reconhecimento da verdade de qualquer religião[3]. A pergunta orientadora é a seguinte: o que faz uma religião ser verdadeira? A novidade dessa abordagem é o fato de que esses critérios permitem não só avaliar as religiões não-cristãs sob a ótica do “acabamento” no cristianismo, mas inversamente, permite também críticas das demais tradições religiosas sobre o que falta de verdade à doutrina cristã.
Em primeiro lugar, Küng faz considerações sobre quatro posições fundamentais com relação às religiões[4]:
A) Nenhuma religião é verdadeira. Todas são igualmente falsas. É a posição atéia. Küng diz que não há como silenciar essa crítica. Mas considera que, ainda que não haja provas possíveis para contestar essa postura, a história da humanidade desde o homem de Neandertal até a grande maioria das pessoas de nossa época atesta o fato comum da religiosidade.
B) Apenas uma religião é verdadeira. Todas as outras são falsas! Essa posição corresponde à postura tradicional católica, que foi abandonada no Vaticano II com a distinção de caminho “ordinário” (cristão) e caminhos “extraordinários” (não-cristãos). Hans Küng lamenta que a maioria dos representantes da teologia protestante não tenha dado esse mesmo passo. Ao contrário, eles consideram que o cristianismo não é religião, mas o fim de toda religião. Sobre a salvação dos não-cristãos, existe uma lacuna nessas teologias, o que as torna criticáveis.
C) Toda religião é verdadeira. Todas as religiões são igualmente verdadeiras! Essa postura nega as particularidades, nega a possibilidade do erro num fato que é humano e, portanto, falível. Além disso, essa posição instaura um relativismo que nivela as experiências religiosas autênticas com crendices e irracionalidades num mesmo patamar de igualdade.
D) Só há uma religião verdadeira. Todas as religiões participam da verdade da religião única! Essa postura (inclusivista) é típica das religiões de origem indiana. E corresponde no Cristianismo à teoria dos cristãos anônimos. É, para Küng uma inclusão artificial, já que judeus, muçulmanos, hindus, budistas, não se salvam por serem judeus, muçulmanos etc, mas por serem cristãos, sem o saber.
Küng visa, depois dessas considerações, propor uma atitude cristã diante das demais religiões que não seja indiferentismo, relativismo ou sincretismo. Para ele não é possível renunciar à questão da verdade em nome de uma democracia religiosa.
Dessa forma, o teólogo suíço propõe os três seguintes critérios[5]:
2.1) O humano, critério ético geral
Esse seria o principal critério. Uma religião não pode ser verdadeira se oprime, reduz, desumaniza, fere a dignidade humana. Se seus ritos, doutrinas e moralidade opõem-se ao crescimento e vida plena do ser humano. Ao contrário, uma religião é verdadeira e boa se permite e favorece às pessoas, uma existência rica e plena, carregada de sentido. Se sua instituição protege a vida e busca a sua realização.
2.2) O autêntico ou canônico: critério religioso geral
Segundo Küng, toda religião pode ser avaliada por sua própria doutrina fundamental, livro sagrado e fundador:

"O critério de autenticidade (daquilo que é original) ou da canonicidade (daquilo que é normativo) não deveria valer apenas para os cristãos, mas poderia constituir um critério religioso geral, em princípio também aplicável a outras religiões: uma religião é avaliada segundo suas doutrinas ou práxis normativas (Torá, Novo Testamento, Corão, Vedas) e, em alguns casos também segundo a pessoa de seus fundadores (Cristo, Maomé, Buda)". [6]

Trata-se, portanto, de verificar o que é realmente essencial, original e normativo daquela expressão religiosa. Em outras palavras, intui-se que a verdade da religião está também no seu específico, na sua identidade. Muitos equívocos históricos, exageros e despersonalizações podem e são resolvidos no movimento de volta às fontes.
2.3) O critério especificamente cristão
Esse critério é o desdobramento do anterior para o caso específico do cristianismo. O autor afirma que, para um estudioso das religiões “neutro” (que faria essa análise “de fora”) o cristianismo se insere entre as demais tradições religiosas e com elas se submete aos critérios gerais de verdade. Neste caso existem várias religiões verdadeiras.
Mas no caso do teólogo em questão, que é cristão, a análise se faz a partir “de dentro”. Ele se confessa cristão e reconhece que o cristianismo o realiza nos critérios. Então, para o cristão Hans Küng, essa religião específica é a “verdadeira religião”.[7]
3 - O PLURALISMO DE JOHN HICK
Se Küng avança em relação a Rahner no reconhecimento do específico de cada tradição religiosa. O teólogo protestante Jonh Hick dá um passo bem mais ousado: questiona a maneira como se formula um dos principais dogmas do cristianismo: a encarnação do verbo.
A linguagem dogmática e a verdade que ela quer representar são problemáticas do ponto de vista do pluralismo religioso. Se Jesus é, literalmente, o próprio Logos divino tornado ser humano, então só pode haver uma única religião verdadeira, uma vez que é fundada pelo próprio Deus. E por que Deus se revelaria definitivamente para apenas uma parcela da humanidade? Para uma cultura tão específica?
Tal dogma poderia ser usado como justificativa para uma série de atrocidades (apesar de não decorrerem do dogma, mas da cobiça humana): anti-semitismo (os judeus assassinaram o próprio Deus), a exploração colonial do Terceiro Mundo, patriarcalismo ocidental, complexo de superioridade frente a outras expressões religiosas. [8]
Além disso, para Hick, a afirmação das duas naturezas de Cristo (Calcedônia - 451) não explica como se dá essa união do divino e do humano em Jesus de Nazaré:

"(...)O problema não se encontra numa linguagem e conceptualidade antiquadas, mas no fato de que, na verdade, o Concílio apenas afirmou que Jesus foi “verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem”, sem tentar dizer como tal paradoxo é possível. (...)Declarar simplesmente que duas naturezas diferentes coexistiram em Jesus “sem confusão, sem modificação, sem divisão e sem separação” é pronunciar uma forma de palavreado que até agora não possui um sentido especificado. A fórmula coloca diante de nós um “mistério”, e não uma “idéia clara e distinta”. Além disso, esse não é um mistério divino, e sim um mistério criado por um grupo de seres humanos que se encontraram em Calcedônia, numa região que hoje pertence à Turquia, em meados do século V".[9]

Todas as tentativas de explicitação do dogma de Calcedônia parecem esbarrar ora numa impossibilidade de afirmar a Divindade de Cristo, ora de reconhecer nele a divindade, em detrimento do “verdadeiro homem”, o que tornou os esforços teológicos nesse sentido, frequentemente heréticos.
A obra em que nos baseamos para este trabalho não trata especificamente da questão do pluralismo religioso, mas de uma cristologia que possibilite esse pluralismo. Pormenorizar sua cristologia seria uma tarefa muito além da proposta desse estudo. Porém, convém ressaltar pelo menos as principais conclusões de Hick no campo cristológico para conhecermos sua postura pluralista.
John Hick apresenta Jesus de Nazaré como profeta escatológico do Reino. Analisa como Jesus foi declarado o Cristo por seus seguidores e como finalmente ele foi proclamado Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o que parece, segundo o autor, extrapolar a própria consciência do Nazareno. Hick critica as teorias atuais que tentam explicar a dupla natureza de Cristo. Mostra os efeitos colaterais do dogma (já aludidos anteriormente) e discute a possibilidade de outras encarnações.
Sobre esse último assunto, o autor nos faz descobrir que Tomás de Aquino já tinha levantado essa hipótese e afirmado serem possíveis mais encarnações do Verbo. Hick desenvolve essa possibilidade e pergunta se seria admissível pensar em outros grandes nomes das religiões como múltiplas encarnações divinas:

"Assim, se admitirmos junto com Tomás de Aquino a possibilidade dessas outras encarnações do Verbo eterno, a próxima questão naturalmente será se, do ponto de vista cristão, líderes espirituais que marcaram toda uma época – tais como Moisés, Gautama, Confúcio, Zoroastro, Sócrates, Maomé e Nanak – não podem de fato ter sido encarnações divinas". [10]

Hick considera seriamente essa hipótese, apesar de afirmar que nenhum desses líderes aceitaria tal vinculação com a divindade por motivos conceituais ou religiosos. Segundo o autor, por causa dos estudos modernos, entende-se que o Jesus histórico nunca teria afirmado ou pensado ser Deus encarnado.
A proposta de Hick, portanto, seria a consideração do dogma como uma metáfora. Ele aponta a dificuldade dos ocidentais em acolher a metáfora como tal, insistindo em considerar tudo sob uma ótica cientificista, de correspondência da linguagem com a realidade. Se o dogma fosse entendido não como uma realidade ontológica, nem com a seriedade de uma declaração de verdade metafísica inquestionável, mas como uma metáfora, uma maneira poética de dizer uma verdade que não demandaria explicações mirabolantes, tal linguagem seria mais crível.
Para o autor, o sentido literal da encarnação seria insustentável ao passo que o sentido metafórico é perfeitamente possível e comunica algo de tremenda importância sobre Jesus, sobre o fundamento da fé cristã:
"Na medida em que um homem ou mulher é para Deus aquilo que sua própria mão é para si, Deus estará “encarnado” na vida humana em questão na mesma proporção. Compreendida desta forma, a idéia de encarnação de Deus na vida de Jesus não é, portanto, uma reivindicação metafísica de que Jesus teve duas naturezas, mas sim a afirmação metafórica do significado de uma vida por meio da qual Deus estava agindo na terra. Em Jesus, vemos um homem que viveu com um grau surpreendente de consciência de Deus e de resposta à presença de Deus".[11]

John Hick ainda debate sobre a teologia do resgate, proposta por Santo Anselmo. Este afirmava que Deus precisava do sangue do Filho para reparar os pecados da humanidade. Tal fórmula, que perdurou por muitos séculos na teologia latina - inclusive nas orações litúrgicas -, é muito pobre em relação à “theosis” da tradição ortodoxa. O modo oriental de pensar a salvação passa por uma transformação, uma divinização do ser humano, na qual a encarnação, a ressurreição e o Espírito têm papel preponderante. Desse modo, ele pode diminuir o peso histórico que a morte de Jesus adquiriu para a questão da salvação.
Sobre a realidade da diversidade de crenças, religiões e credos, Hick, munido da discussão anterior sobre o sentido da salvação, afirma que os cristãos não parecem “mais salvos” do que os fiéis das demais tradições religiosas. Há tantos homens santos no cristianismo quanto nas religiões não-cristãs. E não há mais pessoas más, infantis, prejudiciais para a humanidade nas tradições não-cristãs do que no seio do cristianismo.
Para superar essa dificuldade de lidar com a pluralidade de credos, Hick propõe uma solução baseada no pensamento de Kant sobre a distinção entre a coisa-em-si (noumenon) e o fenômeno (aquilo que se mostra). A realidade transcendente, que Hick chama simplesmente de “Real”, é inacessível em sua transcendência (tal como a coisa em si de Kant), mas pode ser experimentada nas realidades históricas e na contingência humana:

"Em termos kantianos, o noumenon divino, o Real an sich, é experimentado por meios de diferentes receptividades humanas enquanto uma gama de fenômenos divinos em cuja formação conjuntos distintos de conceitos religiosos desempenharam uma parte essencial". [12]

Nesse sentido, as várias maneiras de experimentar o fenômeno religioso constituem as formas como o “Real” se manifesta, formas que são constituídas pelas tradições culturais, históricas. Todos esses esquemas são as lentes por onde se enxerga o Real em cada religião.
Antes que fosse acusado de relativizar a realidade religiosa, Hick propõe algumas explicações sobre sua postura. Para ele, tal posicionamento evita pensar ser desnecessário ou vazio o fundamento das religiões: “O Real”. Por outro lado, também evita identificar o Real com as limitadas visões de uma religião em particular.
CONCLUSÃO:

As religiões tocam naquilo que o ser humano tem de mais arraigado e significativo. Abraçam todas as relações, tocam toda rede de significados que vamos criando em nossa existência, dão sentido à vida e à morte.
É natural também que, sendo profundamente ligadas à experiência humana histórica e cultural, as tradições religiosas sejam tão diversas e, muitas vezes, bastante divergentes. Perguntamo-nos então: será que essa diversidade não é querida por Deus? Pela própria estrutura deste trabalho queremos apresentar uma resposta afirmativa. Mas o outro problema que ocupou também os teólogos cristãos aqui brevemente estudados foi a relação dessa pluralidade factual, com a “inegociável” doutrina da salvação em Cristo. Esse inegociável está entre aspas porque é o que constitui o diferencial cristão em relação às demais tradições religiosas. Por uma questão de identidade, o cristão-teólogo não pode renunciar à importância de Cristo na economia da salvação.
Todos os autores apresentados fizeram suas tentativas de responder a esses problemas.
O primeiro, Karl Rahner, com a teoria dos cristãos anônimos, visava incluir a experiência atemática, não-nomeada, de Deus na própria estrutura antropológica. Assim caracteriza-se um existencial sobrenatural que permite a salvação de todos numa adesão não confessa e desconhecida a Cristo pela vivência das virtudes.
Hans Küng, por sua vez, prefere não correr o risco de submeter as religiões não-cristãs a um absolutismo cristão. Ele prefere pensar que o budista se salva por ser budista, o hindu por ser hindu e o muçulmano por ser muçulmano (e não por serem cristãos sem o saber). Neste sentido, ele prefere buscar o que há de verdadeiro em cada religião, e propõe critérios: 1) O Humano, que corresponde a reconhecer a verdade nas religiões que favorecem a humanidade e cada ser em particular; 2) O Canônico, que compara uma religião da forma como ela se apresenta hoje com suas escrituras sagradas e com seus líderes fundadores; 3) O específico cristão, que procura interrogar o próprio cristianismo à luz do segundo critério.
Por último, John Hick tenta, por uma nova cristologia, desfazer-se da literalidade dos dogmas cristãos para tirar o empecilho de uma superioridade do cristianismo frente outros caminhos de salvação. Sua proposta é entender a encarnação como uma metáfora de um homem profundamente identificado com o projeto divino, um homem no qual muitas pessoas descobriram o sagrado. Por isso Jesus é encarnação, palavra de Deus. Nessa perspectiva, Cristo é a realização do ser humano, ou melhor, o que todos ser humano é chamado a ser. Também segundo essa visão, outros líderes que igualmente levaram as pessoas de suas respectivas tradições religiosas a conhecer a dimensão do Real poderiam ser entendidos como encarnações. Para Hick, portanto, o conhecimento imediato e definitivo do Real é impossível a não ser pelas mediações religiosas, que não conseguem dar conta dessa totalidade. Por isso há tanta diversidade.
O desafio não parou nesses pensadores. Cada teoria tem seu limite. Uns, por desmerecerem outras tradições, outros por avançarem mais do que as Igrejas Cristãs conseguem digerir. Mas reconhecemos a validade dessas tentativas e desejamos que tantas diferenças religiosas não sejam vistas como barreiras ao diálogo. Que sejam reconhecidas como uma “multiforme graça de Deus”. E que, principalmente, entendamos o quanto cada tradição espiritual ganha com a riqueza uma da outra.

BIBLIOGRAFIA

GEFFRÉ, Claude. O lugar das religiões no plano da Salvação in: TEIXEIRA, Faustino (org). O diálogo inter-religioso como afirmação da vida. São Paulo: Paulinas, 1997

HICK, John. A metáfora do Deus encarnado. Petrópolis: Vozes, 2000.

KÜNG, Hans. Teologia a caminho: fundamentação para o diálogo ecumênico. São Paulo: Paulinas, 1999. (Pensamento Teologico).

TEIXEIRA, Faustino Luiz Couto. Diálogo inter-religioso: o desafio da acolhida da diferença. Perspectiva Teológica (Belo Horizonte), Belo Horizonte , v.34, n.93 , p.155-177, maio/ago. 2002.

______. Karl Rahner e as religiões. Perspectiva Teológica (Belo Horizonte), Belo Horizonte , v.36, n.98 , p. 55-74, jan./abr. 2004.


[1] RAHNER, citado por TEIXEIRA, Faustino. Karl Rahner e as religiões. Perspectiva Teológica n.36. p. 62
[2] TEIXEIRA, Faustino. op cit. p. 66.
[3] cf. KÜNG, Hans. Teologia a caminho: fundamentação para o diálogo ecumênico. Terceira parte, seção II.
[4] Cf. KÜNG, Hans. op cit. pp. 264-271
[5] cf. idem pp. 274-288
[6] Idem. p. 281.
[7] O autor deixou um parágrafo inteiro (pp 285-285) em que professa sua fé cristã: “Por que sou cristão? (...) Aqui posso indicar o que considero mais essencial: sou cristão porque aceito – em conseqüência da fé judaica em Deus e como antecipação da fé islâmica – com confiança e de forma prática em que o Deus de Abraão, Isaac (e Ismael) e Jacó não só agiu na história de Israel e falou pelos seus profetas, mas manifestou de modo incomparável e para nós decisivo, na vida e na atuação, na paixão e morte de Jesus de Nazaré. Já a primeira geração de discípulos estava persuadida de que, apesar de sua morte vergonhosa na cruz, ele não permaneceu prisioneiro da morte, mas foi acolhido na vida eterna de Deus. (...) Portanto, sou cristão porque creio neste Cristo (...) e procuro segui-lo na prática e o tomo como guia em meu caminho."[8] cf. HICK, John. A metáfora do Deus encarnado. Todo o capítulo 8 – Efeitos colaterais históricos do dogma da Igreja - é dedicado à forma como o dogma da encarnação foi utilizado indevidamente para justificar abusos injustificáveis.
[9] Idem. pp 69-70
[10] Idem p. 133
[11] Idem. p. 145
[12] Idem. p 189

11 abril 2008

A intersubjetividade em Martin Buber


Esse é o título da minha monografia para a conclusão do curso de Filosofia na PUC-MG. O texto na íntegra pode ser acessado ou copiado no site indicado:





Segue o resumo:


Neste trabalho procura-se investigar os fundamentos da intersubjetividade na filosofia do encontro, de Martin Buber, para quem a relação é o evento primordial do ser humano. Aqui são descritas as duas atitudes fundamentais do homem em relação ao mundo, a saber, relação de presença e de objetivação. Através dessa distinção procura-se perceber que para além da atitude de sujeito conhecedor, o homem se realiza na relação face a face com um ser presente a ele, invocado como seu TU. Daí visualiza-se uma Antropologia do Diálogo, comprometida com a totalidade concreta do homem, que sugere que o ser humano só pode ser compreendido escapando-se de uma visão individualista e de uma visão coletivista. Só é concreto o homem com o homem. Importante é assim discorrer sobre o inter-humano, sobre o diálogo verdadeiro entre os homens e perceber que em toda forma de relação EU-TU, o ser se abre para o TU eterno, com quem realiza a relação suprema.

Palavras-chave: Antropologia Filosófica; Diálogo; Filosofia do Encontro; Intersubjetividade; Relação;

28 março 2008

Experiência da páscoa no cotidiano da juventude


- Artigo publicado no Jornal de Opinão Edição 981 - 20 a 26 de março de 2008 - Belo Horizonte-

Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo...” (Carlos Drummond de Andrade).


Essa pequena frase do nosso poeta mineiro sempre me chamou atenção. É que às vezes nos sentimos tão impotentes, tão pequenos diante dos problemas e dificuldades que enfrentamos! E há tanto o que fazer...


Vejo por exemplo, nossa juventude. Cheia de vida e beleza. Muitas idéias, o sentimento do mundo. É um tempo de decisões importantes, decisões de vida. Que rumo tomar? Que profissão? Trabalhar, estudar, namorar, ajudar a família?


É um crime isso. O maior pecado que os seguimentos políticos, econômicos, sociais, familiares e educacionais podem cometer é retirar a esperança do horizonte dos jovens.


Aproximando-nos da festa da Páscoa, somos convidados a transformar nossos medos, inseguranças e pessimismo em esperança e vida. A Páscoa judaica era a memória de fé de um povo que conquistou a liberdade quando era escravo.


A ressurreição de Jesus igualmente iluminara as trevas dos discípulos frustrados e desorientados. Afinal, como é que foram matar alguém que só fez o bem? Alguém cujo projeto de vida foi vivido na justiça e na paz, que se orientava no amor até aos inimigos, que deu dignidade e vida a tanta gente. Ali, na cruz, depois de um julgamento injusto, também tentaram matar a Esperança. Mas os amigos de Jesus perceberam que o amor é mais forte que a morte e que o mestre se fazia presente em torno da comunidade reunida.


A narrativa dos discípulos de Emaús (ver Lc 24, 13-32), aponta na ressurreição não um evento fantástico e maravilhosamente inexplicável, mas a descoberta de uma presença consoladora de Jesus junto aos seus amigos frustrados. O episódio sinaliza para pequenos gestos cotidianos: uma conversa cordial cheia de sabedoria e uma refeição compartilhada num clima de gratidão.


Os jovens reunidos também podem sentir essa força da ressurreição. Toda vez que alcançam pequenas conquistas, toda vez que se alegram com a felicidade do próximo, quando lutam pelos seus direitos, quando realizam a solidariedade nesse mundo através do voluntariado e da política exercida em favor de todos, quando descobrem o valor do perdão e da partilha. É aí que Jesus se faz presente. Todas essas experiências pascais acendem uma luz onde se acreditava haver apenas desespero e frustração.


O túmulo está vazio, não há mais morte!


O Deus de Jesus é o Deus da Vida! Ele orienta o seu povo no caminho da esperança, no caminho da vida. Nas expressões juvenis, manifesta-se uma grande sede pela vida. A juventude não quer morrer, mesmo que as estatísticas possam dizer o contrário, a juventude quer viver.


Ninguém viu a ressurreição de Jesus acontecer. A fé na ressurreição começa no túmulo vazio, com o anúncio dos anjos às mulheres que pasmam diante da notícia inusitada. É despertada uma euforia ardente nos discípulos descrentes pelo encontro pessoal com Jesus ressuscitado. Assim, não são os fatos empíricos, mas a fé que é o epicentro dos relatos bíblicos da ressurreição. A ressurreição não se baseia em prova histórica, mas no testemunho da experiência transformadora que o encontro com Jesus produz entre os seus seguidores e seguidoras, experiências que ecoam e se repetem até hoje naquelas pessoas e comunidades que Nele crêem.


Enquanto houver discípulos do ressuscitado, deve haver esperança. E a esperança nos abre a uma sabedoria, a um saber viver orientado para o bem e para a partilha, a um reconhecimento da atuação de Deus na história. Nessa história, as pequenas experiências geradoras de vida não perdem seu sentido mesmo quando rodeadas de injustiça, maldade e desespero. Ao contrário, denunciam o mal e mostram que a morte não tem a palavra final.


Basta, portanto, abrir os “olhos do coração” para descobrir uma Presença escondida nos acontecimentos, no partir o pão. E essa Presença já era nossa companhia de viagem, estava no meio de nós... E diante de todo o sentimento do mundo, ainda temos duas mãos.


Tiago Luís Teixeira de Oliveira, ofm
Professor de filosofia na Rede Educafro e de Ensino Religioso no CSA

05 março 2008

Quebrando as regras

Quando tratamos do ser humano, falamos de um animal capaz de se reinventar a cada dia. É justamente por essa flexibilidade potencial que temos necessidade de parâmetros, valores e regras. Nós nos perguntamos como viver melhor, como conviver bem com os outros, como devemos proceder em cada ocasião. Queremos definir o certo e o errado.

Isso, porém, não significa que queremos seguir as regras o tempo todo. Talvez a única norma universalmente válida para o ser humano seja a transgressão das normas.

Tal situação é afirmada no conto "A igreja do Diabo", de Machado de Assis. O texto conta da formação de uma religião do egoísmo, vícios e maldade. No entanto, para a surpresa do Diabo, os seus adeptos transgrediam as normas para fazer o bem vez por outra, às escondidas. Eram "tentadas" a comportar-se bem e sucumbiam a esses bons desejos.

O gênio criativo de Machado de Assis não deixou de expressar com realismo a mania de violar regras que os seres humanos têm. Isso não é uma acusação e nem uma apologia. É simplesmente uma constatação.

A transgressão não é contraditória com a necessidade de normas que o ser humano tem. Pelo contrário, é preciso que haja parâmetros de conduta para que haja sua violação. Nossas normas são os padrões nos quais nos espelhamos, mas são palavras fixas num papel, ao passo que nós somos constante mudança, eterno recriar-se.

É por isso que somos transgressores. Não é por maldade, mas por necessidade de nos superar, por desejos sempre insatisfeitos, sempre novos, como nós mesmos.

Resenha do Filme: Quem somos nós? (What the bleep do we know?)


O filme "Quem somos nós" faz uma aproximação entre física quântica e metafisica, pensando as possibilidades da realidade e as conseqüências das novas descobertas científicas para questões existenciais.

Chama-nos a atenção o fato de a fisica recente lançar questionamentos da ordem do real, reconhecendo a contingência e o grande papel das possibilidades. De fato, o estudo das partículas sub-atômicas aponta para o paradoxo espaço-temporal de um mesmo objeto estar em dois lugares ao mesmo tempo. Passando da ordem sub-atômica para uma realidade mais abrangente, perguntamo-nos o quanto há de contingente mesmo nas possibilidades da vida.

Outro fator relevante levantado pelo documentário é a importância do observador. Enquanto um átomo não é observado, ele é um feixe de possibilidades, mas quando há um observador, ele assume apenas uma forma. A realidade não é, portanto um dado puramente externo, como pensava a física clássica, mas uma construção do sujeito, como já apontavam os filósofos da mente.

Assim, questionamos também uma visão determinista ou fatalista da vida, e, com argumentos da própria ciência, aproximamo-nos do existencialismo que devolve ao homem a possibilidade de dar forma à sua vida através da sua liberdade ontológica. O ser humano, enquanto sujeito, é o grande ator e responsável pelo que ocorre a ele mesmo.

Do ponto de vista religioso, a constatação da constante interação entre tudo o que existe, seja no nível das partículas sub-atômicas, seja no nível da interligação dos eventos, pode dar uma certa sustentação à espiritualidade. No filme, essa religiosidade aproxima-se do zen-budismo e, às vezes, beira ao panteísmo. Mas o importante é demonstrar que a existência de Deus não precisa ser necessariamente um perigo para a razão, podendo até mesmo beneficiar essa visão globalizadora.

Além da física, o filme discute a neurociência e a biologia humana, mostrando como para o corpo, não há diferença entre um experiência real e um sonho ou fantasia. Ou ainda como podemos nos acostumar com a realidade tal qual a experimentamos uma primeira vez, dificultando novos níveis de compreensão e vivência. Uma nova experiência pode ser tão desconcertante que escapa aos sentidos imediatos.

As sensações, além disso, causam uma descarga de hormônios, enzimas, ligações neurais que são assimiladas pelo corpo/cérebro. Quanto mais nos expomos a algumas situações, mais nosso corpo se adapta a elas e nos tornam "viciados" nelas. O mesmo ocorre quando evitamos outras experiências, às quais nosso corpo toma-se menos apto. Daí a importância dos sentimentos: as palavras e o pensamento têm um poder real sobre os acontecimentos e sobre nós mesmos.

É um filme interessante não só pela curiosidade como pela interdisciplinaridade. Os especialistas podem considerá-to até um pouco superficial, mas ele atinge o objetivo: populariza a física quântica e a filosofia, faz refletir sobre nosso papel no mundo e ajuda­-nos a nos conhecermos melhor.

19 fevereiro 2008

O CETICISMO DE HUME

INTRODUÇÃO

O filósofo escocês David Hume tem um importante papel dentro da filosofia moderna. Empirista na linha de John Locke, para quem a mente seria uma tabula rasa, uma folha de papel em branco a receber impressões pela experiência sensível, concebe o conhecimento se dando de duas formas: impressões e idéias. As primeiras seriam percepções mais vivazes, enquanto as últimas seriam reflexões sobre as sensações, que nunca atingiriam o grau de vivacidade das impressões.

Ao afirmar que todo conhecimento só se adquire empiricamente, Hume nega a possibilidade de uma ciência metafísica e seu ceticismo faz com que Kant declare, em sua Crítica da Razão Pura, que foi o filósofo escocês quem o fez despertar de seu "sono dogmático".

1. Da contingência das afirmações sobre os fatos

O projeto científico moderno se baseava na produção de um conhecimento universal e necessário. Tal foi a intenção de Descartes ao escrever o Discurso do Método.

No entanto, Hume contesta a possibilidade deste tipo de conhecimento no que diz respeito aos fatos. A única forma de conhecimento que se pode ter sem uma experiência anterior seria o de um certo matiz de cor que faltasse numa gradação de matizes de uma mesma cor. Entretento, este exemplo é tão singular que não merece muita atenção do autor.

Ele divide os objetos da razão entre relações de idéias e de fatos. No primeiro gênero estão todas as afirmações intuitivamente ou demonstrativamente certas, como as proposições da Geometria, Álgebra e Aritmética. São verdades cuja demonstração se mostra sempre certa e evidente, independentemente da existência de tais formas geométricas ou matemáticas na natureza.

Já sobre o segundo gênero, o da relação dos fatos, não se pode chegar à mesma evidência que o primeiro. Para Hume, por mais evidência que se chegue sobre os fatos, seu contrário também não é contraditório, portanto, uma afirmação neste campo é contingente:

"As questões de fato, que formam os segundos objetos da razão humana, não são verificáveis da mesma forma; e tampouco a evidência de sua verdade, por maior que seja, tem a mesma natureza da antecedente. O contrário de toda afirmação de fato é sempre possível, pois que nunca pode implicar contradição e é concebido pelo intelecto com a mesma facilidade e clareza, como perfeitamente conforme à realidade." (HUME: 1984, pp. 143-144)

Hume, então, dá um parecer de que todos os raciocínios sobre questões de fato se fundam na relação de causa e efeito:

"Todos os raciocínios de fato parecem fundar-se na relação de causa e efeito. Só por meio dessa relação podemos ultrapassar a evidência de nossa memória e de nossos sentidos ( ... ). Todos os nossos raciocínios em torno de fatos são da mesma natureza. E aqui supomos constantemente que existe uma conexão entre o fato presente e o que dele inferimos". (HUME: 1984, p. 144)

O conhecimento dessa relação entre dois fatos distintos não se faz a priori, mas é originado da experiência, quando se verifica que certos objetos se nos apresentam constantemente ligados uns ao outros. Assim, de um objeto desconhecido, mesmo depois de minuciosamente examinado, não se poderia saber suas causas ou efeitos.

Para Hume, portanto, nunca se poderia, pela investigação racional, inferir um efeito de uma causa, uma vez que, como já foi citado anteriormente, seu contrário não é contraditório:

"Numa palavra, pois: todo efeito é uma ocorrência distinta de sua causa. Não pode por isso, ser descoberto na causa, e sua primeira invenção ou concepção a priori deve ser inteiramente arbitrária. E mesmo depois de sugerido sua conjunção com a causa não parecerá menos arbitrária, visto existirem sempre muitos outros efeitos que devem parecer à razão, tão coerentes e naturais quanto esse. Seria em vão, pois, que pretenderíamos determirmr qualquer ocorrência particular ou inferir qualquer causa ou efeito sem o auxílio da observação e da experiência".(HUME: 1984, p. 145)

Aqui, portanto, se encontra um dado importantíssimo sobre a (im)possibilidade do conhecimento. Por mais que a razão se esforce, para Hume, o máximo que conseguiria é reduzir os princípios que produzem os fenômenos naturais à sua maior simplicidade, a um pequeno número de causas gerais por meio de raciocínios baseados na analogia, na experiência e na observação. E sobre essas causas gerais nada se conseguiria descobrir a não ser explicações particulares não satisfatórias.

2. O círculo vicioso da causalidade e a postura cética

Em Hume, a experiência passada fornece informações diretas e certas sobre objetos precisos situados num período determinado. A previsão de que isso vai se repetir no futuro exige um termo médio desconhecido. Em outras palavras, os argumentos de que se deve confiar na experiência passada para nosso juízo futuro são apenas prováveis, o que leva a um círculo vicioso:

"Dissemos (...) que todas as nossas conclusões experimentais partem da suposição de que o futuro será conforme o passado. Por conseguinte, tentar provar esta última suposição por meio de argumentos prováveis, ou seja, argumentos relativos à existência, é evidentemente girar num círculo vicioso e tomar como assente o próprio que está em debate." (HUME: 1984, pp. 147-148)

O círculo vicioso a que se refere Hume pode ser entendido na necessidade de se ter a priori a certeza de que um mesmo efeito sempre se sucede a uma mesma causa, o que é arbitrário, e de que a natureza sempre se comporta da mesma maneira. No entanto, para afirmar o princípio da uniformidade da natureza, é preciso aplicar a lógica da indução, que como vimos, não tem fundamentação racional nenhuma além da crença de que o mesmo efeito se repetirá sempre que houver uma mesma causa.

Tudo isso é afirmado para comprovar que o raciocínio é incapaz de chegar a alguma conclusão acerca das causas e efeitos dos fenômenos. Sobre isso, Hume assume a posição cética, mas não fechada ao conhecimento.

3. A introdução do conceito de probabilidade nas ciências

Para o filósofo escocês, todas as inferências derivadas da experiência são efeitos do costume e do hábito. É, portanto, da repetição de eventos que vêm acompanhados de outros que se pode inferir alguma relação entre os mesmos, por uma crença na continuidade desses eventos observados:

" ( ... ) após descobrir, pela observação de muitos exemplos, que duas espécies de objetos, como a chama e o calor, a neve e o frio, apareçam sempre ligadas, se a chama ou a neve se apresenta novamente aos sentidos, a mente é levada pelo hábito a esperar o calor ou o frio e acreditar que tal qualidade realmente existe e se manifestará a quem lhe chegar mais perto." (HUME:1984, p. 153)

A única explicação de Hume para esse fato de os seres humanos fazerem inferências baseadas na experiência passada se dá a partir da crença e do hábito.

A conexão entre idéias particulares se dará, para o filósofo escocês, por três princípios: semelhança, contigüidade e causação. As inferências, neste caso serão apenas prováveis. E assim é introduzido o conceito de probabilidade na ciência. Na nota da seção VI, intitulada "Da Probabilidade", Hume retoma Locke, que afirma a existência de argumentos demonstrativos e prováveis. Hume prefere a divisão entre demonstrações, provas e probabilidades, tomando por provas os argumentos extraídos da experiência que não deixam dúvida.

Seu posicionamento cético vai, portando, rejeitar o projeto de uma ciência empírica que traga à luz um conhecimento universal e necessário. Pelo contrário, ele demonstra que o conhecimento empírico é particular e contingente, podendo "se universalizar" apenas dentro da probabilidade.

CONCLUSÃO

O posicionamento cético de David Hume apresenta-se como dissolução da pretensão da ciência de obter pela razão um conhecimento universal e necessário.

O filósofo em questão se nega a aceitar a lógica da indução como meio de ampliar o conhecimento. Para ele, é impossível afirmar racionalmente que um efeito sucederá a uma causa, uma vez que ambos são eventos diferentes que nosso hábito se acostumou a perceberem unidos.

Todo um conjunto de exemplos que queiram demonstrar uma causalidade só consegue se aplicar ao passado, não se podendo inferir nada sobre a necessidade daquilo se repetir no futuro.

O seu posicionamento cético introduz o conceito de probabilidade nas ciências. Assim, só se pode falar em previsão por indução num caráter de probabilidade, o que deixa ainda dúvidas de que sempre se confirmará uma teoria tirada de uma inferência.

Dessa forma, as ciências experimentais, a partir de Hume, não podem apresentar uma lei universal, ou pelo menos, suas leis estarão sempre sujeitas à comprovação empírica em que o primeiro fato que contrarie a regra, a tomará falsa.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. Trad. Leonel Vallandro. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os pensadores).

ADOLESCÊNCIA COMO IDEAL CULTURAL

“Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou, mas tenho muito tempo: temos todo o tempo do mundo. Todos os dias, antes de dormir, me esqueço e lembro como foi o dia. Sempre em frente, não temos tempo a perder…” (Trecho da música Tempo Perdido – Renato Russo)

A grande limitação da sociedade ocidental, que viu avanços inegáveis nas últimas décadas nas áreas da saúde, transporte, tecnologia etc, é deparar-se com uma condição incontornável: a morte.

É justamente nesta época em que se percebeu a frustração da finitude humana, em que as pessoas procuram prolongar sua vida, não conversam mais sobre a morte, retiram-na do cotidiano, e se recusam a aceitar o destino de todo vivente, é aí que ocorre a “invenção” da adolescência.


Até poucas décadas atrás, o ideal do adolescente era tomar parte do mundo dos adultos. A sociedade era tradicional, ou seja, os lugares e os papéis já estavam pré-estabelecidos e a vida, mesmo depois da morte do indivíduo, tinha continuidade na comunidade. Esse modelo tradicional e comunitário impunha forte controle sobre a pessoa, e os adultos eram os protagonistas da vida social. Ao adolescente restava conquistar a “maioridade” perante a sociedade.

Com a passagem do modelo tradicional para o contemporâneo, com a primazia do indivíduo sobre a sociedade, a morte torna-se por sua vez uma experiência pessoal, carente de significação subjetiva na existência de cada pessoa. É preciso, em outras palavras, buscar um sentido para a vida e para a morte, que já não está no âmbito comunitário, mas, mesmo que o indivíduo possua uma fé religiosa, reside na intimidade pessoal.

A única instituição tradicional comunitária que perdurou foi a família, que se une pelo laço de amor. A família contemporânea pede que a criança se submeta por amor, mas também a incentiva a se libertar da condição familiar e responder às expectativas paternas, realizando os sonhos do pais frustrados por sua mortalidade.

A infância surge não mais como fase de adultos em miniatura, mas como fase humana específica e especial, alimentando o desejo de realização dos adultos. Estes vêem nas crianças a possibilidade de realização que lhes foi negada pela concreteza da vida e pela sua finitude.
Para os adultos, a infância constitui consolo e esperança: ao olharem para as crianças, sentirão que sua obra inacabada terá com elas continuidade. Ao mesmo tempo sua eterna insatisfação e ambição se tornam suportáveis pois o fracasso alimenta a espera de que as crianças revezarão com eles. Além disso, elas proporcionam um prazer estético.

Por isso os adultos se “derramam” pelas crianças e lhes negam qualquer infelicidade, como se fosse possível garantir a realização de todos os desejos delas. A infância passa a ser tida como uma fase de felicidade, sem o compromisso, a responsabilidade adulta. As crianças são vestidas para comporem a imagem da segura felicidade, se tornando objeto de contemplação, remetendo sempre à infância como fase mítica da realização que nunca alcançaremos.

Com esse ideal, para além do prazer estético, a sociedade moderna força o prolongamento da infância e inventa a adolescência. Pois se a infância é um ideal de momento feliz, é um ideal comparativo, já que a maioria dos adultos não gostaria de voltar a ser criança.

Mais interessante do que de como os adultos olham a infância, é a forma como os adultos vêem os adolescentes. Estes representam um ideal identificatório: têm um corpo capaz de prazer, semelhante ao corpo adulto, com a vantagem da não necessidade de assumir responsabilidade, não ter de sustentar cônjuges e filhos, ter tempo disponível para festas, viagens…

Estabelece-se assim um paradoxo: os adolescentes querem fazer parte do mundo dos adultos e essa participação é negada, por isso formam grupos com que se identificam. Por outro lado os adultos desejam ser como os adolescentes e essa negação da participação é, na verdade, expressão de seu desejo de ver os adolescentes sempre rebeldes e irresponsáveis como gostariam de ser.

Há a tendência dos adolescentes a formar um grupo, rebelando-se contra o mundo adulto que lhes nega participação. Tal tendência é usada e exaltada pela mídia e pelo marketing que aproveitam para propor modelos de comportamento e de consumo, visuais, acessórios e estilos. Não somente para os adolescentes, mas também para os adultos, que começam a consumir produtos para jovens. Desde os anos 80 o marketing vem se especializando em adolescência: eles são numerosos e possuem mais dinheiro a cada ano e apresentar produtos voltados para adolescentes é incentivar o consumo adulto, que também sonha com a juventude.

A rebeldia característica da adolescência não é revolta pela exclusão do mundo adulto, mas cumprimento da vontade destes. O ideal cultural em nossa sociedade é a insubordinação, e a revolta torna-se a realização do sonho dos adultos. Estes se tornam com isso expectadores vendo seus desejos realizados nos adolescentes.

Com isso, tornam-se o próprio objeto de desejo dos adultos, ou seja, estes percebem o adolescente como a realização de seus sonhos: prazer sem responsabilidade, jovialidade. Os adultos se dão conta de que suas vidas vão acabando e que não se realizaram, mas o adolescente pode viver intensamente o que aqueles não devem mais por sua idade, e pelos compromissos sociais, de trabalho e da família. Por isso são os próprios adultos que empurram ao adolescente o signo da rebeldia e da irresponsabilidade. Torna-se assim o ideal cultural da sociedade.

Os adultos precisam tanto da adolescência como ideal para realizar-se, que Contardo Calligary afirma: “Se a adolescência não existisse, os adultos modernos a inventariam, tanto ela é necessária ao bom desempenho psíquico deles.”. (CALLIGARY, 2002, p. 60).

O fenômeno que se observa com isso, é que não só os adultos procuram vestir-se e comportar-se como adolescentes, mas vestem as crianças semelhantemente. O que se percebe é que a o comportamento adolescente típico tem ocorrido mais precocemente nas crianças e a maturidade tem atrasado. Os adolescentes não querem mais chegar rapidamente à idade adulta, mas preferem permanecer adolescentes. Há, até mesmo, casos de pessoas de 40 anos que não querem sair da casa dos pais, casar-se ou conduzir a sua vida à maturidade. Essa atitude é compreensível quando o adolescente se percebe como a realização dos sonhos dos adultos, quando todos querem ser como ele é, possuir o viço de sua juventude.

Naturalmente, não quererá amadurecer, pois isso exige capacidade de enfrentar a vida, as frustrações, o medo e a angústia que todo processo humano causa. Exige que o fracasso possa fazer parte da vida, que se tenha responsabilidade para assumir as próprias atitudes.

Essa tendência da adolescência como ideal é típica do americanismo: sociedade de consumo, individualista, hedonista. Talvez por isso Renato Russo tenha chamado sua geração de “geração Coca-Cola” em uma música homônima.

Ao recusar-se a morrer, os adultos da sociedade ocidental voltam-se para os adolescentes e fazem “curvar” a linha do tempo, ao contrário do oriente ou das sociedades que se relacionam pacificamente com a idéia da morte e da continuidade da vida.

É isso que Renato Russo canta na primeira frase do trecho citado no início do texto: o tempo passa continuamente e cada tempo desperdiçado é tempo perdido, mas para os jovens há “todo o tempo do mundo”.

Essa é mesma ideologia transmitida pelos anúncios publicitários voltados para os adolescentes, vinculando um produto ao ideal de liberdade, de curtição, de um tempo estático na juventude, ou seja, não é uma fase passageira da vida, mas a única fase em que se vive realmente a vida.

Não admira que nessa sociedade capitalista, os idosos sejam “enterrados” antes de morrer. Não se admite ao ancião os direitos por seu trabalho de anos a fio, sua experiência é desprezada como tudo que não é jovem, dinâmico, “moderno”. O idoso é tido como alguém que já está ultrapassado, perto da morte e não mais capaz de curtir a vida.

Vive-se sob a tirania da eterna juventude, as pessoas adultas querem aparentar menos idade do que têm, vestem-se como seus filhos, recorrem a cirurgias plásticas para apresentar o ideal de beleza imposto pela cultura ocidental: o que é jovem é belo.

É por isso que a Campanha da Fraternidade 2003 da CNBB alertou para a questão dos idosos. No texto base dessa campanha há uma afirmação que se repete ao longo do documento expressando a seguinte idéia: “Ninguém quer envelhecer, mas todos querem viver para sempre”. Afinal, como é que se quer viver mais sem envelhecer? Quer-se viver para sempre, mas como jovem, não como pessoa madura.

Por fim, resta-nos perguntar até quando a adolescência será o ideal cultural da sociedade, se esse movimento em torno da busca da eterna juventude e da estética dará ou não lugar a uma sociedade que também valorize a profundidade de vida, a experiência dos idosos e, que, realisticamente, encarará o problema da morte como constituinte da vida. Envelhecer é a tarefa dos adolescentes, mas enquanto esse processo for tratado como fim da linha e não como nova experiência, não chegaremos a uma sociedade que respeite o ancião e que se volte para valores duradouros, que realmente transformem o ser humano em seres melhores, ao contrário dos valores fugazes que se propõem por aí nos outdoors.

Até que chegue este dia, se a morte não nos chegar primeiro, corramos contra o tempo e cantemos com o poeta: “sempre em frente, não temos tempo a perder…”.


BIBLIOGRAFIA

CALLIGARY, Contardo. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2002. p.56-74.

CNBB. Texto-base da Campanha da Fraternidade 2003. São Paulo: Editora Salesiana, 2003.