03 dezembro 2009

Maquiavel além do Príncipe: o povo como ator político

  1. PROBLEMATIZAÇÃO

Sem dúvida alguma, a obra mais conhecida, comentada e controversa do pensador florentino Nicolau Maquiavel é O príncipe. Nela, o filósofo renascentista discorre sobre a criação e a conservação das formas de governo por ele chamada de principados. Maquiavel trata claramente de indicar os meios mais eficazes de fundar um Estado Absolutista. Seja O Príncipe um livro de conselhos ao monarca, um estudo histórico de que procura tirar as lições do passado, ou simplesmente uma constatação do que constitui a política de fato (aquilo que o florentino acredita ser a “verità effetuale”), ainda assim o ator principal da ação política seria o governante. O príncipe virtuoso no sentido maquiavélico não seria o piedoso cristão, mas o chefe capaz de concorrer com a impetuosa fortuna pelo comando dos acontecimentos. A virtù do príncipe está em aproveitar uma boa fortuna, o momento propício, e preparar-se de tal forma para todo tipo de situação indesejada de modo que seus danos seriam minimizados, seu ímpeto controlado. Cabe ao príncipe prudente tomar as melhores decisões para cada momento.


Percebemos, portanto, que Maquiavel coloca o príncipe no centro da ação política. Que razões poderíamos invocar para empreender um estudo do papel desempenhado pelo povo no pensamento do filósofo renascentista? Mais de um motivo intimidaria tal empreendimento.

Em primeiro lugar, o leitor d’O príncipe pode, com certa razão, interpretar que o povo de que trata o florentino não passa de uma massa de manobra, que deve ser utilizada oportunamente na defesa dos limites territoriais, ou tornada dependente do soberano, amando-o, se possível, mas necessariamente temendo-o.
Um segundo motivo, não menos justo, é uma tendência de Maquiavel em afirmar, ao longo de sua obra, a natureza má e inconstante do ser humano. Essa antropologia negativa soa como um refrão nos seus escritos. Isso nos faz crer que não é possível pensar numa virtude política própria do povo.

O que desejamos nesse trabalho é mostrar que, ainda que Maquiavel sustente a visão negativa da natureza humana, isso não é empecilho para que o povo desempenhe papéis importantes no jogo político. É possível constatar virtudes cívicas mesmo numa obra pautada pela ação do governante como é O príncipe. Mas o verdadeiro papel político do povo aparece sem rodeios quando o florentino escreve sobre o modelo de governo republicano.

O pensador renascentista, no II capítulo de O príncipe, explica já ter tratado das repúblicas em outros lugares. Trata-se dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.[1] Nos Discorsi, o tema do povo está intimamente ligado ao conceito liberdade. Escolhemos, portanto, abordar a virtude política do povo sob o prisma da liberdade e sua ameaça pela corrupção.

Não pretendemos idealizar ou supervalorizar a atuação popular no jogo político, nem esperar fazer aqui uma revelação. Os temas da liberdade e do povo como ator político já foram tratados por muitos estudiosos e, provavelmente com melhor maestria que aqui. Além do mais, Maquiavel não propõe nada parecido com uma ascensão dos populares ao poder, nem admite que o povo seria a peça principal da atuação política. É preciso reconhecer, no entanto, que o povo é fundamental para a existência e renovação da vida política.

  1. POVO COMO ATOR POLÍTICO EM MAQUIAVEL
2.1. INTRODUZINDO OS DISCORSI

Maquiavel tenta, em seus Discorsi, logo no início do primeiro livro, apontar para aspectos históricos da fundação das cidades. Haveria três tipos de fundação:

1) As cidades fundadas por habitantes do mesmo país, que buscando um refúgio mais seguro e mais cômodo, movem-se conjuntamente para o novo local. Atenas e Veneza são exemplos desse tipo de fundação.

2) As cidades erigidas por estrangeiros, para acomodar a população excedente ou para manter de modo mais seguro as novas conquistas. Várias cidades fundadas pelo povo romano encaixam-se nesse perfil.
Tanto do primeiro caso, quando do segundo, resultam cidades livres. A própria Roma, se considerada fundada por Enéas seria um exemplo de cidade iniciada por um povo estrangeiro; se entendermos que a cidade foi fundada por Rômulo, trataria de um exemplo de cidade fundada por habitantes naturais do país. Seja qual for o caso, sua origem é livre.

3) Um terceiro caso são as cidades fundadas unicamente para exaltar a glória do príncipe. Alexandria é um bom exemplo. Um outro seria a própria cidade de Maquiavel, Florença. Essas cidades já nasceram dependentes.

Para o autor em questão, interessa discorrer sobre as cidades de origem totalmente livre. A escolha do local da nova fundação implicaria também a decisão por estabelecer a nova cidade num local fértil, acrescida de leis que impeçam o povo de esmorecer devido à facilidade de vida oferecida pelo clima natural.

O papel da lei é ressaltado nos Discorsi I,2 de modo que haveria cidades fundadas com leis perfeitas em sua origem (Esparta) e outras, como Roma, cuja legislação foi pouco a pouco se aperfeiçoando para equilibrar os poderes nobres e populares e, assim, evitar a corrupção natural de toda e qualquer forma de governo. É que as leis precisam levar em consideração a natureza perversa do ser humano, que conduziria qualquer forma de governo inevitavelmente à ruína:

Como demonstram todos os que escreveram sobre política, bem como numerosos exemplos históricos, é necessário que quem estabelece a forma de um Estado, e promulga suas leis, parta do princípio de que todos os homens são maus, estando dispostos a agir com perversidade sempre que haja ocasião.[2]


2.2. O POVO COMO GUARDIÃO DA LIBERDADE

 

O fato é que Maquiavel nega-se a concordar com a opinião comum de seu tempo, de que o impedimento para a liberdade de uma cidade encontra-se na desordem provocada pelos conflitos de interesses, pela discórdia entre os diferentes setores da sociedade.[3] Isso só seria verdadeiro se os homens fossem de índole boa.

Dentro do quadro geral do pensamento maquiaveliano, os conflitos são extremamente necessários para a conservação de uma vida política livre, e um meio para evitar a corrupção comum a um regime baseado unicamente na virtude do fundador, ou na habilidade do príncipe. Pelo contrário, é da desunião entre os aristocratas e o povo que nasceram as boas leis de Roma:

Os que criticam as contínuas dissensões entre os aristocratas e o povo parecem desaprovar justamente as causas que asseguraram fosse conservada a liberdade de Roma, prestando mais atenção aos gritos e rumores provocados por tais dissensões do que aos seus efeitos salutares. Não querem perceber que há em todos os governos duas fontes de oposição: os interesses do povo e os da classe aristocrática. Todas as leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião.
[...] Não se pode de forma alguma acusar de desordem uma república que deu tantos exemplos de virtude, pois os bons exemplos nascem da boa educação, a boa educação das boas leis, e estas das desordens que quase todos condenam irrefletidamente. [4]

A tese de Maquiavel é que, se por essa desordem brotaram instituições boas, como a dos tribunos, então não há porque não louvá-la, “[...] pois o povo, desta forma, assegurou participação no governo. E os tribunos foram os guardiães das liberdades romanas[5].

A novidade dessa postura reside no reconhecimento do papel dos conflitos entre nobreza e povo, entre o desejo de dominação dos nobres e o desejo de não opressão da plebe. Esses conflitos encontram um escoadouro nas leis republicanas, que precisam ser renovadas para acomodar as posições antagônicas. O antagonismo das duas classes, em Roma, possibilitou a conservação da liberdade por um longo período.

Analisando a origem livre da forma política nos Discorsi, Miguel Vatter entende que Maquiavel aponta o desejo popular como animador da vida política e a estabilidade política como germe da corrupção:

A tese que atribuo a Maquiavel é que uma república permanece em existência somente enquanto sua vida política é animada pelo desejo do povo de não ser dominado, pela capacidade de seus cidadãos de contestar e renovar qualquer ordem legal e política, pela consciência de que a corrupção vai junto com a ilusão opressiva da estabilidade da forma política[6]

Interrogando, no capítulo 5 do livro I dos Discorsi, se devemos confiar com mais segurança a defesa da liberdade aos aristocratas ou ao povo, o florentino escolhe a plebe. Os populares têm mais motivo para resguardar a forma livre de governo, seja por desejar não ser oprimidos, seja por ter menos esperança de alcançar o poder. Entre aristocratas e plebeus, os últimos teriam menos avareza na salvaguarda da liberdade. Roma seria um exemplo de república com objetivos expansionistas, e, dessa forma, é mister dar poder ao povo. Já Veneza ou Esparta, tendentes à conservação, são casos do poder dado aos nobres, de modo a presentear-lhes com o que desejam e evitar dissensões do povo.

Ao analisar esse capítulo, Bignotto[7] adverte que, a princípio, não devemos nos deixar enganar de que se trata de escolher entre uma república que quer conquistar (Roma) e uma que quer conservar (como Esparta ou Veneza). A verdadeira intenção de Maquiavel é mostrar que “o povo, apesar de causar perturbações na cidade, tem um desejo mais verdadeiro de salvaguardar a liberdade do que os nobres que desejam sempre conquistar novas posições na ‘polis’.” [8]

2.3. A LIBERDADE EM O PRÍNCIPE

 

A atuação política do povo não se restringe somente à reflexão sobre as repúblicas. Também no Príncipe encontramos trechos que demonstram o papel desempenhado pelos cidadãos. Quando a matéria em questão é a conquista de uma república, Maquiavel não esconde as dificuldades que se impõem. As cidades livres conservam a memória das antigas leis e da liberdade. Por essa razão, o príncipe deve destruí-las ou será por elas destruído[9].

O caso do principado civil (cap. IX) é ainda mais exemplar. Trata-se dos casos em que um cidadão torna-se príncipe pelo desejo dos seus conterrâneos. Ele alcançaria o poder pelo favor do povo ou dos nobres. Maquiavel retrata novamente as duas tendências, dos poderosos e do povo, de cujos apetites brotam um dos seguintes: principado, liberdade ou desordem. As palavras do autor são eloqüentes para retratar o principado surgido desses apetites:

O principado é instituído ou pelo povo ou pelos grandes, de acordo com a oportunidade que se apresentar a uma dessas partes; os grandes ao descobrir que não podem resistir ao povo, principiam a formar a reputação de um de seus elementos e o tornam príncipe, para, sob sua sombra, satisfazer seus apetites. Também o povo, percebendo não poder resistir aos grandes, cria a reputação de um cidadão e o elege príncipe, para manter-se seguro com a autoridade deste. Aquele que alcança o principado com o apoio dos poderosos conserva-se mais dificilmente do que aquele que é eleito pelo povo.[10]

Obviamente, como o próprio Maquiavel ressalta, o príncipe apoiado pelos grandes precisa conquistar em primeiro lugar o povo, pois depende dele. O mesmo podemos dizer com relação às armas, que para o florentino devem ser dadas aos súditos. Estes seriam os melhores defensores do principado, pois lutariam por sua liberdade. Dessa forma, a virtude política do povo inclui o serviço militar.

Dessa maneira, reconhecemos que o povo, nas duas obras de Maquiavel, não constitui, como à primeira vista, um mero joguete nas mãos dos governantes. Ele pode ser considerado um dos atores políticos fundamentais. Alimentado pelo desejo de não-opressão, o povo é considerado o guardião da liberdade, reivindicando espaço nas leis para assegurar que não será oprimido pelos grandes. Da virtude política popular, Maquiavel admite terem surgido as melhores leis republicanas e as maiores barreiras para a tirania e a corrupção.

2.4. LIBERDADE E CORRUPÇÃO

 

O filósofo renascentista exprime a dificuldade de corromper um povo que estima sua liberdade. Nos Discorsi III, 8, Maquiavel cita os casos de Spúrio Cássio e Mânlio Capitolino. Cássio quis subornar o povo em troca de vantagens às expensas do tesouro público, fato que foi rejeitado pelos possíveis beneficiários. Se, diz Maquiavel, “o povo romano já estivesse então corrompido, não teria agido assim, abrindo caminho à tirania, em lugar de levantar-lhe um obstáculo.”[11] O caso de Mânlio é também interessante. Os tribunos não hesitaram em unir-se com a aristocracia para condená-lo à morte, apesar dos inúmeros benefícios do passado. A lição tirada por Maquiavel dos relatos de Tito Lívio é incisiva:

Portanto, se se pretende usurpar o poder numa república, dando-lhe más instituições, é preciso que essa república já esteja depravada: que tenha sido levada à desordem gradualmente, de geração em geração. A corrupção é o seu destino final, a menos que ela se revigore com muitos exemplos de virtude, ou seja reconduzida pelas leis ao início do seu desenvolvimento. [12]

É fundamental tocar aqui no tema da corrupção. Já aludimos que Maquiavel não faz nenhum tipo de idealização do povo. No mesmo capítulo dos Discorsi o autor afirma ser tão difícil corromper um povo habituado com a liberdade quanto libertar um povo acostumado à escravidão. No capítulo 40 do livro I a tirania é apresentada como causada pelo “desejo ardente de liberdade por parte do povo e o desejo não menos vivo que tinha a nobreza de dominá-lo”. Disso decorre necessariamente que o povo, sendo sujeito da liberdade política, é também sujeito da corrupção.

Nessa questão, Maquiavel é extremamente pessimista. É quase impossível que um povo corrompido volte a gozar plenamente da liberdade. Seria necessária uma ação extraordinária, na reforma gradual ou imediata do todas as leis. Isso deveria ser feito por um cidadão virtuoso, o que implicaria contradição, pois ele chegaria ao poder por meios desvirtuados e violentos, os mesmos que necessitaria combater.[13]

  1. PARA NÃO CONCLUIR
Há diversos aspectos importantes que, pelas pretensões deste trabalho e por diversas limitações, não foram contemplados aqui. Um desses aspectos seria dar um conceito bem definido do que Maquiavel entende por “povo”. Seria uma tarefa nada fácil e provavelmente frustrante. Tratar do povo como ator político implica reconhecer que uma grande parcela dos cidadãos, aqueles destituídos de posses e honrarias (em oposição aos aristocratas) exerce coletivamente um papel fundamental na condução da vida política.

Seguindo uma tradução literal de Vatter, diríamos que o povo é sujeito-matéria da política. Sujeito enquanto exprime seu desejo por liberdade e ausência de opressão, enquanto exige leis que impeçam a tirania e instaurem os tribunos. É matéria por constituir a maioria do corpo político a ser governado e conduzido, por estar ameaçado pela opressão dos nobres e pela corrupção.

De qualquer forma, é evidente que Maquiavel inclui essa categoria tão difícil de definir, cujo conjunto dos membros é nomeado indistintamente por “povo” como um ator político fundamental. Os populares aparecem no Príncipe, mas principalmente nos Discorsi, como os guardiães da liberdade e, por isso mesmo, da própria essência da forma republicana de governo.

BIBLIOGRAFIA

 
BARROS, Douglas Ferreira. Disposição à oposição. In: Discutindo Filosofia especial: Maquiavel. Ano 1, No.4.

BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo: Loyola, 1991. (Coleção Filosofia; v.19).

MACHIAVELLI, Nicolo. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. 2.ed. rev. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora UnB, 1979.

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Escritos políticos. Trad. Olívia Bauduh. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

VATTER, Miguel E. Between form and event: Machiavelli’s theory of political freedom. Dordrecht/Boston/London: Kluwer Academic Publishers, 2000. p.87

[1] A edição brasileira, da Universidade de Brasília, traduziu o título como Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. (MACHIAVELLI, Nicolo. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. 2.ed. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1979). Para efeito de padronização, referir-mo-emos a essa obra como Discorsi.
[2] MACHIAVELLI, Discorsi, I, 3.
[3] Bignotto registra bem o senso comum do “trecento” e do “quattrocentro” de que a existência de conflitos internos era condenável. Para ilustrar essa opinião defendida desde Dante até os humanistas, há uma citação de Marsílio de Pádua que transcrevemos aqui: “Mas como os contrários engendram os contrários, é da discórdia , contrário da tranqüilidade, que provêm, para toda a sociedade civil ou reino, as piores conseqüências e inconvenientes, como o demonstra – o que não é segredo para ninguém – o exemplo do reino da Itália.” (in: BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano. São Paulo: Loyola, 1991. p. 85)
[4] MACHIAVELLI, Discorsi, I,4.
[5] MACHIAVELLI. Discorsi I, 4
[6] VATTER, Miguel E. Between form and event: Machiavelli’s theory of political freedom. Dordrecht/Boston/London: Kluwer Academic Publishers, 2000. p.87
[7] BIGNOTTO, Newton. op. cit. p.91
[8] Idem, p.91
[9] MAQUIAVEL. O Príncipe. cap. V.
[10] MAQUIAVEL. O príncipe. cap. IX.
[11] MACHIAVELLI. Discorsi III, 8.
[12] Idem.
[13] MAQUIAVELLI. Discorsi I, 17-18.

3 comentários:

  1. Oi Professor Tiago Luis. Meu nome é Isabelle Pires e sou aluna de Direito, estava procurando algum artigo bom para estudar sobre Maquiavel. Gostei muito do texto e do seu blog em si. Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. Obrigado pela visita. Sinta-se à vontade para voltar mais por aqui.

    ResponderExcluir
  3. Professor Tiago,obrigado o texto ajudo me na prova de ciências politicas,valeu!Meu nome é Roberto sou de São Paulo,aluno de Dierito.

    ResponderExcluir