25 novembro 2008

Seria a ciência realmente racional?


- Argumentos de Paul Feyerabend a favor de um "anarquismo epistemológico" -


( Esse artigo foi originalmente escrito como parte da delimitação do problema para o projeto de pequisa intitulado A MUDANÇA NAS CIÊNCIAS SEGUNDO PAUL FEYERABEND, de minha autoria. Como todo projeto, tem caráter provisório e pode se mostrar ainda superficial. Entretanto foi com esse projeto que fui selecionado para o programa de Mestrado em Filosofia da UFMG. Dedico essa postagem a todos meus amigos e familiares que torceram por mim e me apoiaram nesse demorado processo seletivo)


Por mais chocante e provocadora que uma proposta auto-intitulada “anarquista” seja, pode ser interessante levar a sério os argumentos históricos e epistemológicos levantados por Paul Feyerabend para afirmar a impossibilidade de um método que garanta de antemão uma verdade objetiva.

A defesa deste ponto de vista parte tanto de 1) uma análise da história das ciências naturais quanto de 2) uma acurada crítica aos modelos de racionalidade científica propostos tanto pelo positivismo lógico quanto pelo falsificacionismo de Popper.

A primeira tem caráter mais simples. Basta recorrer, por exemplo, à narrativa da mudança do paradigma[1] aristotélico-ptolomaico para o copernicanismo de Galileu[2]. A troca paradigmática não foi necessariamente um avanço, pois retomou a concepção pitagórica de movimento da Terra. Muito menos aparece como uma ampliação do conhecimento, tal qual sugere os modelos empiristas. Ora, o natural segundo os falsificacionistas seria que um modelo falho deveria ser abandonado em favor de um mais consistente. O modelo pitagórico deveria, em tese, ter sido abandonado. Galileu, entretanto, preferiu um sistema menos coerente com os fatos no que diz respeito ao movimento da terra mostrando como esses mesmos fatos observáveis poderiam ser interpretados relativisticamente. O caso Galileu mostra que o desenvolvimento da ciência não segue nem os padrões exigidos pelo empirismo e nem corresponde ao modelo falsificacionista. O exemplo, largamente discutido por Feyerabend, aponta para a necessidade de uma nova teoria não só apresentar fatos novos, mas também uma nova linguagem observacional. Assim, a história das ciências naturais desabona os modelos neo-positivistas e os falsificacionistas.

A segunda crítica é mais pungente. A obrigatoriedade do empirismo de confrontar as teorias com os fatos observáveis tem contra si a dificuldade de que os próprios fatos estão impregnados de teorias, algumas das quais desconhecidas. Segundo Feyerabend,

“Fatos e teorias estão muito mais intimamente ligados do que o admite o princípio de autonomia [dos fatos]. Não apenas é a descrição de cada fato individual dependente de alguma teoria (a qual pode, é claro, ser muito diferente da teoria a ser testada), mas também existem fatos que não podem ser revelados, exceto com o auxílio de alternativas à teoria a ser testada e deixam de estar disponíveis tão logo tais alternativas sejam excluídas”.[3]


Com esse argumento, Feyerabend explica porque teorias antigas e hipóteses que pareçam absurdas de início não devem ser abandonadas sem serem seriamente examinadas. Uma vez que existem falhas e que praticamente nenhuma teoria é consistente com os fatos, é irracional aceitar o falseacionismo. Isso nos deixaria sem teoria nenhuma:

“De acordo com nossos resultados atuais, praticamente nenhuma teoria é consistente com os fatos. A exigência de admitir apenas teorias que sejam consistentes com os fatos disponíveis e aceitos deixa-nos, mais uma vez, sem teoria alguma (...). Conseqüentemente, uma ciência tal como a conhecemos pode existir só se abandonarmos também essa exigência e mais uma vez revisarmos nossa metodologia, admitindo a contra-indução, além de hipóteses não-fundadas. O método correto não deve conter nenhuma regra que nos faça escolher entre teorias com base no falseamento”. [4]

Levando isso em consideração, torna-se bem plausível a tese de que se o cientista se pautar pelo seguimento estrito dos métodos pré-aprovados como científicos, não haverá avanço no conhecimento. Se as teorias novas são julgadas pelas antigas, como decidir pela nova, mesmo se essa for melhor que a mais considerada? E neste caso, qual o critério para estabelecer a melhor teoria?

É aqui que se coloca o problema do avanço do conhecimento científico. E é em torno desse problema que desejamos pesquisar. Feyerabend quer uma ciência não falseacionista, pois tal procedimento excluiria teorias anteriores que, como já foi dito, são necessárias para revelar teorias implícitas na linguagem observacional, ou mesmo porque podem ser retomadas e apresentar uma nova abordagem (lembremo-nos do caso Galileu). O que, então, o filósofo sugere quando prega uma metodologia “pluralista”?

Para o autor de Contra o método, é preciso tempo para que uma nova proposta teórica comece a fazer sentido e a coerência dependerá de novos fatos e de hipóteses e aproximações ad hoc, não podendo ser medida pela teoria dominante, muito menos pela linguagem da tradição dominante[5].

A hipótese desse trabalho é que Feyerabend coloca para os historiadores e filósofos da ciência um problema de envergadura semelhante à que David Hume lançou em seu tempo. O filósofo escocês colocou em cheque a relação necessária entre causa e efeito nas questões de fato e, com isso, relativizou a indução, revelando o quanto há de crença e força do hábito nesse processo.

Paul Feyerabend argumenta não só contra o método empirista como também contra o método que tentou escapar ao problema da indução colocado por Hume: o racionalismo crítico. Além disso, mostra a incomensurabilidade entre os padrões antigos e novos de construção do conhecimento, e como nossa linguagem observacional já é em si mesma teórica (há crenças, ideologias, preferências e tendências teóricas encobertas). Por isso opta por uma ciência com métodos plurais, cujas teorias se desenvolvam por partes muitas vezes desiguais, necessitando de teorias complementares ad hoc e tempo para acomodar a nova linguagem. Sua filosofia pluralista das ciências retira a suposta autoridade da racionalidade e da cientificidade, agora entendidas como meras tradições sem vínculo necessário com uma verdade objetiva.

Por isso mesmo é que o autor discute a pretensão de que o atual estágio do conhecimento científico seja mais correto do que o de outras tradições não-científicas. Dessa forma, Feyerabend quer abrir a possibilidade de um diálogo democrático entre os cientistas e os demais membros da sociedade. É um desejo de uma ciência livre, mas também de uma sociedade livre do perigo de uma “tirania” científica.

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[1] O termo paradigma é discutido amplamente por T. Kuhn (cf. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 9.ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 30). Feyerabend compartilha com esse autor a visão de que a ciência é produto histórico e inclusive utiliza-se da noção de paradigma científico. Sua postura diverge, no entanto de Kuhn com relação à necessidade de amarrar a história com teorias. Feyerabend prefere não submeter-se a limites rígidos de um sistema conceitual. (cf. FEYERABEND, Paul. Contra o método. São Paulo: Ed. UNESP, 2007 p. 59)

[2] Feyerabend dedica nada menos que 9 capítulos de Contra o método para mostrar a argumentação de Galileu em favor de seu modelo cosmológico através de artimanhas, apelo a analogias e apego a uma teoria inconsistente com os fatos unicamente por causa de sua racionalidade. Um diagrama da mudança paradigmática em que os mesmos fatos são usados para confirmar tanto o paradigma anterior quanto a proposta galileana pode ser conferido em FEYERABEND, Paul. Contra o método p. 109
[3] FEYERABEND, Paul. Contra o método. pp. 54-55 (grifos do autor)
[4] Idem p 85
[5] Feyerabend fala de um movimento de recuo, da necessidade de tornar nesse primeiro momento a nova teoria mais metafísica: “Esse movimento de recuo não é apenas um acidente; ele tem uma função definida; é essencial se quisermos alcançar os ‘status quo`, pois nos dá tempo e liberdade necessários para desenvolver a concepção principal em detalhe e para encontrar as ciências auxiliares necessárias”. FEYERABEND, Paul. Contra o método, p. 166.

12 novembro 2008

Do desejo e da necessidade



Tive oportunidade de escrever muito brevemente sobre essas duas coisas: necessidade e desejo. [1] Mas um recente diálogo com uma amiga me despertou para aprofundar nesse tema. Vou situar a conversa para que o leitor entenda melhor o que quero dizer.

Eu estava comentando sobre minha vontade de comprar um carro (não que eu tenha dinheiro para tal), falando de como esse objeto poderia facilitar a minha vida. Moro numa capital, preciso me deslocar por grandes distâncias e depender de ônibus em Belo Horizonte é uma coisa que só os habitantes dessa cidade sabem como é triste. Nada de mais até então. Até então, repito...

Quando disse que pensava num modelo ano 2000, popular, minha amiga teve uma clara decepção e disse preferir juntar dinheiro para comprar um carro esportivo do ano. Estávamos num barzinho e, bem, esse não é um lugar para discutir diferenças pessoais, não é mesmo?

O fato é que essa conversa rendeu-me uma reflexão: onde residia de fato a diferença de opinião entre minha amiga e eu? Por que ela se decepcionou de saber que eu não queria um carrão esporte, mas um popular usado? Afinal voltei a reflexão para a distinção entre necessidade e desejo.

Meu problema de locomoção se resolve com um carro (qualquer um). Em outras palavras, trata-se da necessidade de deslocamento rápido e de evitar perda de tempo e atrasos. Não necessito de um EcoSport, mas de um carro. Aqui encontro talvez uma diferença entre meu modo de pensar e o de minha amiga.

No artigo em que escrevi sobre a temperança, falei de necessidade como fome e sede. Mas nem só de pão vive o homem...

Além da fome e da sede, que são evidentemente necessidades básicas, há um elemento chamado desejo. E o desejo desperta em nós uma atração irresistível para um objeto que parece nos prometer mais do que ele mesmo é. Acho que essa é uma boa definição de desejo: uma promessa na qual acreditamos e que, porém, nunca será cumprida. É o paradoxo do qual Freud já falava em seus escritos: nossas pulsões provêm de uma fonte inesgotável e nunca serão saciadas inteiramente, só simbolicamente através de mecanismos sutis ou sublimadas em um esforço de transcendê-las.

A grande questão é que pouquíssimas pessoas têm força de vontade e grandeza de caráter o suficiente para tentar a via da sublimação. Então nossos esforços voltam-se para a realização incompleta dos nossos desejos através dos vários objetos que nos prometem uma parcela de felicidade.

Acredito que o maior erro de Karl Marx foi ter pensado que os seres humanos ficariam felizes com a satisfação das necessidades. Que as pessoas se contentariam com uma sociedade sem fome, sem carências materiais, sem classes sociais. Pois o socialismo idealizado por esse pensador visava acabar com a carência material e a desigualdade social. Falando abertamente, o Comunismo se voltava para a necessidade dos seres humanos inseridos nesse sistema econômico. O erro aí foi desprezar a força do desejo.

O Capitalismo, ao contrário, mesmo criando um fosso colossal entre ricos e miseráveis, e dependendo da exploração das massas para sua manutenção, focou-se no ponto fraco do ser humano: o desejo. Esse sistema econômico tem uma capacidade enorme de transformar desejos em necessidades. Por via da propaganda, da ostentação e da moda, muitos produtos acessórios tornam-se “obrigatórios”. Aquilo que até ontem nem existia passa a ser o objeto de urgência de hoje. E nós nem nos damos conta desse processo, dessa manipulação do nosso desejo.

É que o capitalismo trabalha o simbólico, mais do que com o útil. E o simbólico mexe com estruturas internas do ser humano, tal como a religião e a arte. Marx chamou a isso “fetiche da mercadoria”. Passamos então para um último item dessa reflexão: o consumo.

O consumo é o meio pelo qual o capitalismo se sustenta. Poderíamos falar que é o detalhe mais importante desse modo de produção. Toda crise no capitalismo é também uma crise de consumo.


Pois bem, todos os produtos são criados para serem consumidos. Caso não sejam consumidos, o marketing incumbe-se de criar a sensação da necessidade desses produtos nos consumidores. Depois de consumidos, o mercado realiza outra façanha: torna os produtos já consumidos rapidamente obsoletos. Nesse sentido entra o papel imprescindível da moda e da estética. Nem é preciso que o produto se degenere, a mudança na aparência das mercadorias causa a impressão de que as compras do semestre passado são do tempo das cavernas. Basta repararmos como os computadores se desatualizam rapidamente (a tela plana faz o monitor comum parecer uma máquina de escrever).

Sendo assim, fazemos a seguinte pergunta: se o desejo é de tal forma infinito, é possível escapar do consumismo a que ele nos direciona? Eu tenho a tese otimista que sim, é possível! É claro que o leitor vai me perguntar como...Respondo: com um pouco de racionalidade. Simples assim? Não, de modo nenhum é simples. Demandaria refletir sobre o que é necessário, o que é útil e o que é simplesmente produto dos caprichos do desejo. Seria preciso rever nosso padrão de consumo. Seria igualmente preciso entender as conseqüências do consumismo para nosso planeta desde a extração de matéria-prima, passando pela produção em escalas absurdas (com a poluição que advém dessa produção), até o problema do lixo e dos aterros sanitários.

Por fim, gostaria de sugerir um vídeo inspirador sobre essas questões. Intitula-se “A história das coisas” e fala de todo esse processo cujo principal elo é o consumo: http://www.unichem.com.br/videos.php (esse vídeo ficou melhor no link do que no youtube)