ÉTICA DA CRENÇA - exposição feita no grupo PENSA
Tiago Luís Teixeira de
Oliveira
Problema em questão:
1. É moralmente correto acreditar sem
indícios?
A questão foi colocada por William Clifford
(1879) e foi ilustrada pelo exemplo do armador que decide zarpar com um navio
lotado baseado na sua crença de que o navio não precisa de reparos e nem irá
naufragar (cf. capítulo 16 do material). Na ocasião, Clifford sugeriu ser
imoral acreditar sem indícios suficientes para isso. Resumindo em 3 proposições
sobre a ética da crença, Clifford sustenta que
·
É
legitimamente correto acreditar num fato se houver indícios para isso
·
É
legitimamente correto não acreditar num fato se houver indícios para isso
·
É
legitimamente correto suspender o juízo na falta de indícios conclusivos
Uma vez que essa opinião refere-se a todos os tipos de crença, podemos interpretar que todos os enunciados acima também se aplicam à crença religiosa. Sua posição, portanto, é a de que é prudente e moralmente correto sustentar um agnosticismo[1] baseado na falta de evidências sobre a existência de Deus[2].
2. Como Clifford sustenta sua posição:
(a) Se
crer em qualquer opinião sem indícios traz conseqüências indesejáveis para a
humanidade, então é imoral crer nessa opinião.
(b) Crer
em qualquer opinião sem indícios traz conseqüências indesejáveis para a
humanidade
(c) Logo,
é imoral crer em qualquer opinião sem indícios
Não é difícil sustentar (a) uma vez que é consensual que se algo prejudica a humanidade, não deve ser feito. O problema de Clifford é sustentar (b) e ele o faz com as seguintes afirmações:
b1. Nenhuma crença é
matéria puramente individual, mas tem conseqüências sociais.
b2. Em diversas
analogias considera-se errado agir desprezando os indícios ou ausência deles,
pois haveria conseqüências ruins para as pessoas.
b3. A “vontade de
acreditar”[3]
não é um bom motivo para sustentar uma crença religiosa, pois cria uma atitude
de irracionalidade generalizada.
Dessa forma, segundo
Clifford, não só é irracional crer sem ter provas, como imoral fazê-lo, dadas
as conseqüências danosas que uma crença irracional pode oferecer.
3. Objeções a Clifford
Basearei em quatro
autores algumas objeções à noção de que é imoral crer sem ter indícios.
- Tomás de Aquino: Há indícios racionais de que Deus existe. (Ver provas da existência de Deus
- William James: A crença em Deus difere-se das demais crenças por ser momentosa, forçosa e vital
- William Rowe: Embora possa ser irracional crer sem provas, não há nada que leve necessariamente à imoralidade de toda crença sem indícios.
- Alvim Platinga: É correto crer sem indícios quando se trata de uma crença apropriadamente básica.
3.1. Embora Tomás de Aquino afirme que as
verdades da fé (reveladas) superam nossas capacidades intelectuais, ele
reconhece que alguns atributos divinos e mesmo sua existência podem ser
conhecidos por demonstrações racionais. Quando uma verdade de fé é demonstrada,
ela passa para o rol dos conhecimentos e deixa de exigir fé, pois o intelecto
deve aderir à verdade demonstrada. A fé incide nas verdades que não podem ser
racionalmente aceites[4].
O importante aqui é perceber que Tomás de Aquino entende que somos capazes de
provar a existência de Deus e falar dele mesmo que analogicamente. Quando a fé
é exigida, esta é auxiliada pela razão. Neste caso a crença religiosa não seria
uma crença sem indícios e seria moralmente correto crer em Deus. Rowe levanta
duas objeções à perspectiva tradicional tipificada em Tomás de Aquino: 1) hoje
poucos sustentam que podemos provar afirmações de fé (elas excedem a razão) e
2) a fé torna-se extremamente dependente da razão, uma vez que é preciso
definir racionalmente o que é o que não é revelado por Deus.
3.2. William James em 1897 escreveu uma
resposta a Clifford, num texto intitulado “A vontade de acreditar”. O primeiro
concorda com o fato de que é imoral crer sem indícios, mas abre uma exceção à
crença em Deus, porque o agnosticismo
em termos práticos, iguala-se à postura de ateísmo e porque a fé em Deus é uma
opção viva, forçosa e momentosa. Queremos explicar melhor esses últimos termos:
·
Opção
viva: pode mudar a forma como vivemos
·
Opção
momentosa: existe algo vital em jogo (bênçãos, graças, imortalidade feliz
etc.).
·
Opção
forçosa: não optar, neste caso, tem as mesmas conseqüências de optar pelo
ateísmo.
James faz aqui uma reelaboração da “aposta de Pascal”. O filósofo
francês sugeriu que apostar em Deus é mais interessante do que apostar na não
existência de Deus. A razão é muito simples: se Deus existir o crente ganha
tudo, se não, não perde nada. A aposta contra Deus faz com que o ateu não ganhe
nada (exceto o fato de poder estar correto) caso Deus não exista ou perca tudo
no caso de Deus existir. James inclui aqui o agnóstico no esquema da aposta:
Segundo James, portanto, parece ser uma mesquinharia manter-se no agnosticismo somente para evitar algo tão comum em seres humanos: o erro. Uma analogia exprime bem como esse autor vê o agnosticismo sem erro de Clifford:
É como um general que diz os seus soldados que mais
vale evitar eternamente a batalha do que arriscar uma única ferida. Não se
consegue assim vitórias sobre inimigos ou sobre a natureza. Os nossos erros não
são com certeza coisas tão horrivelmente solenes. Num mundo onde estamos tão
certos de incorrer neles, por muito prudentes que sejamos, uma certa ligeireza
de espírito parece mais saudável do que este nervosismo exagerado por sua
causa. (JAMES, 1948, p. 100)
James concorda que devemos crer em algo quando há indícios em seu favor,
ou desacreditar quando os indícios contam contra o objeto de crença, mas recusa
que na ausência de indícios contra ou a favor, a suspensão do juízo seja o mais
racional. No caso de opções genuínas (vivas, momentosas e forçosas) e, somente
nesses casos, é legítimo escolher passionalmente.
3.3. William
Rowe em sua Introdução à filosofia da
religião (2007) trata exatamente do problema levantado em (1). Nele o autor
faz também uma objeção a Clifford mostrando que algumas crenças, mesmo que
irracionais, não constituem dano para a humanidade. Crer que Deus ama a cada
ser vivo, crer que Deus manda amar os demais seres humanos, não matar e nem
roubar ou emitir falso testemunho etc. Tudo isso pode ser irracional, mas não
parece ser imoral, na medida em que não prejudica a humanidade e nem a si
mesmo. O próprio Rowe citou a resposta de Clifford a esse contra-argumento:
Se me permito acreditar seja no que for com indícios
insuficientes, da mera crença pode não resultar grande mal; pode afinal ser
verdadeira, ou posso nunca ter ocasião de a exibir em acções públicas. Mas não
posso deixar de cometer este grande mal contra a humanidade: o de tornar‐me
crédulo. O perigo para a sociedade não é meramente o de acreditar em coisas
erradas, embora isso seja suficientemente mau; mas o de se tornar crédula e
perder o hábito de testar as coisas e de as investigar; pois então recairá
forçosamente na selvajaria. (CLIFFORD, 2009, pp. 185-186)
Quanto a James, Rowe procura mostrar
que o primeiro só provou que a crença teísta ou ateísta são momentosas e
forçosas no caso de Deus realmente existir. Ele não mostrou que tais crenças
são sempre momentosas e forçosas. Numa análise da controvérsia James-Clifford,
Rowe sugere que James apela à tolerância (direito de crer), mas que o faz com
bases em razões. Clifford, por sua vez, também apresenta razões para ser
agnóstico: evitar que a humanidade caia na credulidade. O autor contemporâneo
defende Clifford dizendo que James deveria mostrar que a crença em Deus não
levaria à credulidade.
O que Rowe deixou passar
despercebido é que Clifford incorre na falácia da pista escorregadia: prever
conseqüências desastrosas de algumas situações para provar que tais situações
devem ser absolutamente evitadas. Da aceitação de uma ou mais crenças para as
quais não há indícios suficientes não é possível afirmar que a humanidade
tornar-se-ia apta a aceitar todo tipo de crença irracional. No meu entender, é Clifford que deveria
provar que a aceitação de uma crença religiosa leva necessariamente à
credulidade geral.
3.4. Alvim
Platinga (1981) tenta um caminho diferente e surpreendente dos até então
divulgados aqui. Ele sugere que não é preciso haver indícios para adotarmos uma
crença. Sua argumentação é relativamente simples:
I.
Se
uma crença é racional, então é necessário que ela seja sustentada por outra
crença (regresso infinito)
Não é possível
sustentar todas as crenças racionais a menos que haja crenças básicas (não
sustentadas racionalmente)
Logo, se
uma crença é racional, é preciso que haja crenças básicas para sustentá-la.
II.
Se
existem crenças básicas, então nem toda crença precisa ter indícios a seu favor
Existem
crenças básicas
Logo, nem
toda crença precisa ter indícios a seu favor
O primeiro argumento parte de uma condicional cética. Caso eu exija indícios para todas as crenças que possuo eu precisaria regredir indefinidamente, revelando as razões das razões sem chegar ao fim. Além do mais existem inúmeras crenças que possuo baseadas exclusivamente no que parece a mim: Ver um gato pulando a janela é suficiente para crer que um gato pulou a janela, sem precisar de indícios que justifiquem tal crença. Platinga chamou esse tipo de crença de apropriadamente básica, pois não há necessidade de regredir mostrando por que tal crença é verdadeira. Analogamente, a crença em Deus pode ser uma crença apropriadamente básica quando uma pessoa tem uma experiência mística ou em outros casos em que parece evidente que Deus existe e não é preciso apresentar indícios.
O primeiro argumento parte de uma condicional cética. Caso eu exija indícios para todas as crenças que possuo eu precisaria regredir indefinidamente, revelando as razões das razões sem chegar ao fim. Além do mais existem inúmeras crenças que possuo baseadas exclusivamente no que parece a mim: Ver um gato pulando a janela é suficiente para crer que um gato pulou a janela, sem precisar de indícios que justifiquem tal crença. Platinga chamou esse tipo de crença de apropriadamente básica, pois não há necessidade de regredir mostrando por que tal crença é verdadeira. Analogamente, a crença em Deus pode ser uma crença apropriadamente básica quando uma pessoa tem uma experiência mística ou em outros casos em que parece evidente que Deus existe e não é preciso apresentar indícios.
Rowe também encontra problemas na perspectiva de Platinga, como no caso em que uma crença como a do Papai Noel é apropriadamente básica para as crianças até que os adultos resolvam demovê-la. Seria possível que a crença em Deus deixe de ser básica quando pessoas adultas se encontram em um ambiente de profundo questionamento do sagrado e com a descoberta da enorme diversidade teológica das várias religiões?
A meu ver, já finalizando essa exposição, mesmo que a crença em Deus não seja apropriadamente básica, Platinga mostrou que nem toda crença racional precisa de indícios definitivos a menos que eu regrida infinitamente. Restaram duas posições: manter o posicionamento de Clifford de que é imoral crer sem ter provas (neste caso somos todos imorais por termos uma tarefa de regresso infinito para justificar nossas crenças) ou reconhecemos com Platinga que algumas crenças são básicas e portanto injustificáveis por meio de regresso (neste caso o problema da moralidade da crença se dissolve). Quer fiquemos com Clifford ou com Platinga, ainda é preciso saber se a crença em Deus depende ou não de outras crenças. A julgar pela diversidade de opiniões, essa ainda é uma questão em aberto.
Bibliografia:
ALMEIDA, A. et al. A arte de pensar: filosofia 10º ano.
4.ed. Lisboa: Didáctica editora, 2009. Volume II.
CLIFFORD, W. K. (1879) “A Ética da
Crença”, in Murcho (2009).
JAMES, William (1897) «A Vontade de Acreditar», in Murcho (2009).
KANT, Immanuel (1788) Crítica da Razão Prática. Trad. de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2008.
MURCHO, Desidério (org.) (2009) Fé, Epistemologia e Virtude: Ensaios de Filosofia da Religião. Trad. Vítor Guerreiro. Lisboa: Bizâncio, no prelo.
PLANTINGA, Alvin (1981) “É a Crença em
Deus Apropriadamente Básica?” Trad. de Vítor Guerreiro. In Murcho (2009).
ROWE, William L. (2007) Introdução à Filosofia da
Religião. Trad. Vítor Guerreiro. Revisão científica de Desidério Murcho.
Vila Nova de Famalicão: Quasi, no prelo.
WARBURTON, Nigel. Elementos básicos de filosofia. Trad.
Desidério Murcho. Lisboa: Gradiva, 2007
[1] Consideraremos aqui três tipos
básicos de posicionamento em relação à existência divina: 1) Teísmo – crença na existência de um
Deus pessoal com os atributos a ele dados pelas religiões monoteístas. 2) Ateísmo – crença na não existência de
Deus/Deuses. 3) Agnosticismo – posição
que opta por não decidir nem pelo teísmo e nem pelo ateísmo, dado na haver
razões conclusivas a favor ou contra a existência de Deus. (Não trataremos de
posturas como panteísmo, deísmo e demais pontos intermediários
entre as várias opções)
[2] Note-se que mesmo filósofos
declaradamente teístas como Immanuel Kant, podem considerar infrutíferas as
discussões racionais sobre a existência ou não existência de Deus. Na sua
dialética transcendental (Crítica da Razão Pura) o filósofo sustenta que ideias
como a de Deus, alma imortal e mundo são apenas passíveis de serem pensadas,
mas nunca de constituírem conhecimento (pois só fenômenos podem ser
conhecidos). O prussiano lançou a possibilidade de sermos epistemologicamente
agnósticos, mas aderirmos ao teísmo como postulado (seria o lugar da fé).
[3] Essa expressão aparece numa
resposta a Clifford elaborada por William James (1897) e expressa bem o
problema: trata-se de afirmar uma opinião porque parece uma visão de mundo mais
bonita e não porque parece ser a melhor explicação para as coisas. Acreditar
num ser divino amoroso e compassivo sem nenhuma prova é, segundo Clifford, um
caso de pensamento desejoso (wishfull
think). Não é um argumento, mas uma esperança de que as coisas sejam assim.
[4]
Nesse sentido, quando os fiéis ressuscitarem no Reino de Deus, não mais viverão
pela fé, mas pelo conhecimento.
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