23 fevereiro 2012

Deus para pensar


O sagrado sempre fascinou a humanidade e é impossível dizer com precisão quando surgiu a ideia de Deus. Mas é possível saber quando Deus começou a interessar os filósofos: desde que os gregos do século V a.C. iniciaram a tradição de investigação racional conhecida como filosofia. Os gregos acreditavam em vários deuses e estes tinham forma e comportamentos humanos.

 Enquanto vários dos pensadores da filosofia grega permaneciam crentes na religião tradicional, Xenófanes de Cólofon (nascido por volta de 570 e falecido aproximadamente em 460 a.C.) desconfiava que os deuses não deveriam ter forma de pessoas. Para ele, se os touros tivessem deuses, tais deuses teriam chifres. Aliás, outra ideia que Xenófanes recusou é que havia vários deuses. O raciocínio do filósofo era mais ou menos o seguinte: Deus é um ser ilimitado, portanto, se houver mais seres ilimitados, teríamos um deus limitando o outro. Desse pensamento o filósofo concluiu que só pode existir um único Deus. Coincidentemente, é o mesmo que as religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) acreditavam.

E como sabemos que existe mesmo um Deus?


As religiões monoteístas afirmam que Deus existe porque Ele se revelou à humanidade através de pessoas escolhidas. Segundo essas religiões Deus estabelece uma relação pessoal com os seus fiéis e com toda a criação e, dessa forma, não é preciso provar que Deus existe. É aqui que religiosos e filósofos se diferenciam: enquanto religiosos creem num Deus pessoal, os filósofos analisam a ideia de Deus. Por isso Pascal (1623-1662 d.C.), filósofo francês e católico fervoroso, afirmou que o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó (patriarcas do judaísmo) não era o mesmo Deus dos filósofos. O Deus das religiões é uma pessoa e o Deus dos filósofos é uma ideia.

Os filósofos que pensam sobre a ideia de Deus precisam recorrer a argumentos e a raciocínios coerentes para discutir a possibilidade dessa ideia e suas consequências. Este seria o campo da filosofia da religião.

Alguns filósofos tentaram provar que Deus existe. Aristóteles (384–322 a.C) e Tomás de Aquino (1225 — 1274 d.C.) afirmavam que tudo que existe tem uma causa. Assim, podemos explicar uma coisa pela sua causa anterior e essa por uma causa ainda mais anterior. Esse raciocínio pode levar a um regresso infinito a menos que exista uma causa primeira, eterna, que produz todas as coisas mas não é causada por nada. Na tradição filosófica esse raciocínio ficou conhecido como Argumento Cosmológico.

Outros pensadores achavam que o argumento cosmológico tem um problema: fala que tudo tem uma causa, mas diz que Deus não tem causa. Trata-se, portanto, de uma contradição e, por isso, não é eficaz. Mas se o argumento cosmológico não é eficaz, isso não significa que Deus não existe e, muito menos, que não existam outros argumentos. É possível, por exemplo, pensar por comparação: quando encontramos um relógio, sabemos que é preciso um relojoeiro para que o mecanismo exista e funcione. Da mesma forma podemos pensar que a existência de um mundo cheio de vida e de leis naturais leve a crer que exista um criador divino. Esse argumento é também chamado Argumento do Desígnio.

Talvez esse argumento convença mais pessoas. Mas (a essa altura o leitor já deve estar familiarizando-se com a ideia de que os filósofos não param de investigar e de analisar os argumentos) existe um bom motivo para afirmar que o mundo não é como um relógio. A nossa melhor teoria que explica a existência das espécies vem da biologia: a teoria da evolução. Por essa teoria, as espécies que existem atualmente são fruto de um processo de seleção natural que ocorre por tentativa e erro. Assim, muitas espécies que habitavam o planeta não existem mais e outras poderão se extinguir, enquanto novas poderão surgir. Por essa razão, um biólogo atual, Richard Dawkins referiu-se ao argumento do desígnio como um péssimo argumento. O livro em que expõe sua crítica chama-se (não por acaso) “O relojoeiro cego”.

Há ainda mais um argumento importante que afirma que Deus existe: trata-se do Argumento Ontológico. Esse raciocínio foi proposto pela primeira vez por um filósofo medieval chamado Santo Anselmo (século XI d.C.). Anselmo define Deus como “o ser do qual não é possível pensar nada maior”. Agora vejamos como Anselmo argumentou: Se eu puder pensar num ser perfeito que não existe, então esse ser não é perfeito. Uma pedra que existe teria mais perfeição que esse ser pensado. Por isso, conclui o filósofo, Deus precisa existir: não posso pensar em Deus sem que Deus exista. Há uma versão  moderna do argumento, proposto por Descartes (1596-1650 d.C.): a ideia de um ser perfeito não pode ser criada por um ser imperfeito, portanto, a ideia de Deus só pode existir porque Deus existe.

O argumento ontológico tem também seus problemas: existência não é uma propriedade das coisas.  Ninguém ao definir uma bola diz: é redonda, é colorida e é existente. Além disso, o argumento assume a verdade do que quer provar: Deus criou a ideia de Deus, logo, Deus existe. Deus é perfeito, logo, Deus existe. Pensar assim é um erro conhecido como círculo vicioso, é o mesmo que dizer que as drogas causam dependência porque levam ao vício.

Essas provas filosóficas da existência de Deus podem convencer alguns, mas sem dúvida não passam no teste dos pensadores mais exigentes. Dificilmente um crente deixaria de acreditar em Deus porque as provas sejam insuficientes. Também é difícil pensar que um ateu passe a crer por causa de qualquer desses argumentos apresentados. Talvez a ideia de Deus sirva para exercitar melhor a arte de pensar filosoficamente. Aliás, é uma tarefa inacabada. Mesmo que os filósofos desistam de provar que Deus existe, ainda há vários problemas relacionados à ideia de Deus:
  • é preciso saber se um Deus bom e todo poderoso pode ser afirmado mesmo com a existência de tanto mal no mundo;
  • é preciso investigar se podemos ser livres caso haja um Deus que sabe todas as nossas ações futuras;
  • é preciso também pensar sobre a crença comum de que Deus pune os maus e recompensa os bons. Para muitos só tem sentido agir moralmente bem se Deus existir. O que acontece se Deus não exisitr? Deixamos de ter motivos para agir bem?
Se o leitor entende que esses são questionamentos importantes, então seja bem vindo(a) ao fascinante mundo da filosofia da religião. 

9 comentários:

  1. Boa noite.

    Há uns dias andei escrevendo sobre Teodiceia no meu blog (www.letraseciencia.blogspot.com), no qual você está convidado a entrar e comentar, o que acho que contribuirá com o blog. E agora encontro o mesmo assunto aqui.

    Gostaria de deixar algumas observações:

    1º O argumento ontológico de Santo Anselmo é inválido por causa da confusão feita entre o plano ontológico e o plano lógico.

    2º O argumento cosmológico de Aristóteles e São Tomás é válido, mesmo porque a objeção feita, conforme você disse, de que "tudo tem uma causa, logo a causa primeira não pode ser incausada" não procede, pois não é TUDO que tem uma causa - o que resultaria realmente em uma contradição no argumento - mas TUDO O QUE SE MOVE é movido por outro, ou todo efeito tem uma causa. Isso não contradiz a existência da Causa primeira incausada.

    3º Sobre o problema do mal no mundo sabe-se, conforme aponta Santo Agostinho, que acontece por causa da perversão da vontade no homem que escolhe praticar o mal, em vez do bem. E mesmo a existência de tanto mal - também a existência de bem, seja em potência, seja em ato, mas parece que pouco visto - não implica a inexistência de Deus, cuja sabedoria e bondade infinitas sabemos ser por se conhecer os atributos de Deus baseando-se sobre as provas de sua existência. E também a nível filosófico não é possível especular sobre os planos de Deus para as pessoas. Portanto a ausência de certeza (filosófica) sobre o que Deus planeja para cada um não representa obstáculo para se provar que Ele exista e seja infinitamente sábio e bom.

    4º Daqui a um segundo posso escolher entre pressionar a tecla A ou não pressioná-la. Como Deus sabe de tudo que foi, é, do que poderá ser, sabe como serão as coisas se eu optar por uma ou outra opção. O fato de saber as consequências de qualquer escolha que eu tenha feito não implica que eu não tenha o livre-arbítrio. É como perguntar a um aluno na sala: "você quer sair da sala ou não?" Supondo que tudo corra normalmente, ele pode dizer "sim" e sair ou "não" e permanecer na sala. O professor já sabe da consequência de uma escolha ou outra, claro que não com a mesma ciência de Deus (apenas para ilustrar), e isso não tirou a liberdade do aluno.

    5º Os "muitos" que agem bem por causa de (serem recompensados por) Deus possivelmente o façam por medo de serem punidos por Ele, não tendo então a noção do princípio mais geral de Moral: fazer o bem e evitar o mal. Se optam por agir mal, decerto não têm noção do que seja a ordem, harmonizar-se com a lei natural.

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  2. Oi Marcos.
    Primeiramente agradeço a visita e o convite. Gostei do seu blog e voltarei outras vezes.

    Sobre o seu comentário, gostaria de demarcar algumas coisas: há mais de uma maneira pela qual alguns argumentos são inválidos.

    1) Sobre o argumento ontológico, concordo que é uma passagem do plano lógico para o ontológico. Uma objeção semelhante foi feita por Gaunilo: é impossível pensar uma ilha perfeita que não exista, logo, deve existir uma ilha perfeita. A objeção que eu levantei remonta a Kant. Mas de qualquer forma é um círculo vicioso: assume como verdade aquilo que quer provar.

    2) O argumento cosmológico é inválido por várias razões. Supondo que seja possível haver uma causa incausada, não é correto fazer a passagem da proposição "Todas as coisas (exceto Deus) possuem uma causa" para "existe uma única causa primeira de tudo". Veja: nada impede de termos uma série infinita de causas (Aristóteles propôs uma causa primeira para evitar uma regressão infinita, mas porque não pode haver uma regressão infinita? Seria o mesmo que parar uma contagem numérica em 1000 porque é preciso parar em algum lugar). Também não é impossível pensar em uma série circular de causas (A causa B que causa C que causa D que causa A). Mas o que mais me deixa incomodado com a prova cosmológica, é a desconsideração de que um retrocesso na ordem causal leva cada vez mais ao aumento das causas e não à redução a uma única causa. Eu sou causado pelo meu pai e minha mãe. Tenho 4 avós, 8 bisavós, etc... Quanto mais retrocedo nessa cadeia, mais aumenta o número de causas.

    2) Sobre o problema do mal (sobre o qual ainda não escrevi, só mencionei) é uma questão bastante problemática para as religiões que professam um Deus bom e justo. Considero que a melhor literatura para isso seja o De libero arbitrium (Santo Agostinho). Mas acredito que o livre arbítrio só responda ao problema do mal moral, ficando de fora uma boa explicação para o mal natural e para o sofrimento do justo. Não nego que a religião possa dar uma explicação teológica para isso, embora tal explicação envolva o que muitas vezes foi chamado por "mistério do mal". Mas apelar para o mistério é recusar uma análise filosófica (aquela que a filosofia da religião busca).

    3) Sobre a compatibilidade entre o livre arbítrio e Deus onisciente vale a pela ler "A consolação da filosofia" do filósofo latino Boécio. Nessa obra o autor considera a diferença entre temporalidade humana e eternidade divina. Sendo Deus eterno presente, não faz sentido atribuir-lhe um conhecimento temporal como o nosso. A sua explicação também faz sentido, ela remonta à filosofia de Leibniz sobre os vários mundos possíveis.

    4) Sobre o fundamento religioso da moral vale a pena ler o dilema de Eutifron (Platão). O que é justo? a)É justo porque Deus ama ou b)Deus ama porque é justo? Caso (a) então se Deus amasse o homicídio, este seria justo. Caso (b) então não é Deus que define o justo e o injusto. Kant foi um filósofo que pensou a moralidade através de regras racionais autônomas. Mas apesar de pensar que o dever não dependa da religiosidade, Kant acreditava que nada poderia garantir a felicidade de quem agisse por dever a não ser se a alma fosse imortal e Deus reservasse o sumo bem àqueles que merecessem (agindo bem sem buscar recompensa).

    Abraços,
    Tiago

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  3. Sobre o argumento cosmológico:

    1. Há coisas que mudam. Não é nem tudo estático (conforme se vê pelas evidências dos movimentos), nem tudo se movendo (por exemplo, o teorema de Pitágoras continua sendo o mesmo da época dele, não mudou). Então, há coisas que mudam.

    2. O movimento é a atualização de uma potência a ato, ou seja, um ser passa da potência de x para o ato de x. Então, Movimento = P(x) -> A(x).

    3. Mas o ser não passa da potência de x para o ato de x sozinho, e sim sob a ação de um ato, o que equivale a dizer que "todo efeito tem uma causa" e não "tudo (incluindo todas as causas) tem uma causa". São proposições diferentes. Por exemplo, para a parede branca em ato ser vermelha em ato (isto é, passar da potência de vermelho para o ato de vermelho) é preciso a ação de um ser em ato: a tinta vermelha em ato, por exemplo.

    4. Portanto - e isto aqui é importantíssimo - no movimento que ocorre no ser, a potência precede o ato (potência de vermelho antes do branco em ato), mas para que o movimento aconteça o ato precede a potência (tinta vermelha em ato antes da potência para vermelho).

    Este quarto ponto é importante saber (sobre quem precede quem) porque quando retrocedemos na sequência de movimentos, ou ela é infinita ou finita. Ela não pode ser infinita porque:

    a) o universo deveria ser infinito. Ora, o que é infinito não podemos dividir, e no universo dividimos muitas coisas. Logo, a sequência não pode ser infinita.

    b) o movimento p(x) --> a(x) existe PORQUE há um ato que atualiza p(x) para a(x). E supondo a sequência infinita, ficaremos infinitamente colocando uma potência anterior ao ato, sendo que é o ato anterior à potência que realiza o movimento, senão o movimento não é realizado, o que é absurdo.

    Assim, é necessário que haja um primeiro motor imóvel e ato puro, dentre as outras qualidades.

    Espero que me tenha feito claro.

    Sobre os outros temas, é interessante que um possa dar sugestão ao outro.

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  4. Oi Marcos.

    Na verdade há um problema na sua explicação:

    você recusou que algo infinito pudesse ser divisível, mas não é o caso. Uma reta pode ser dividida em dois segmentos de reta. Não há nada que implique necessidade de uma causa primeira (embora não haja nada que impossibilite isso)

    Quando falo de argumento inválido, penso não na verdade da conclusão, mas na forma lógica do argumento. Um argumento formalmente válido apresenta uma estrutura tal que é impossível ter uma conclusão falsa se as premissas são verdadeiras.

    EX: A causa B e B causa C, Logo A causa C.

    A forma acima é válida, pois não há ocasião em que é fato que A cause B e B cause C sem que A cause C.

    Mas o argumento cosmológico é do tipo:

    p1: Tudo que se move é movido por algo
    p2: existe algo que move sem ser movido
    p3: Não é possível regredir infinitamente
    C: Logo, existe um primeiro motor imóvel.

    Mesmo que todas as premissas sejam verdadeiras, nada implica que exista necessariamente um primeiro motor imóvel (de p1, p2 e p3 podemos pensar que haja vários motores imóveis - recusamos com p3 que existam infinitos motores imóveis)

    Esse é um argumento inválido porque a conclusão não é necessária. Mas utilizando o princípio da caridade, tomemos o argumento por válido.

    Resta ainda verificar a verdade das premissas, pois uma premissa falsa torna possível uma conclusão falsa ainda que o argumento seja válido.

    p1 é falsa segundo a física que reconhecemos atualmente. A 1a lei de Newton afirma que um objeto sobre o qual atua um conjunto nulo de forças permanece em repouso ou em movimento retilíneo uniforme. Em outras palavras, pelo estudo da inércia (e pelas experiências da física) um objeto pode se mover sem ser movido. Aristóteles não explicava bem o movimento dos projéteis (que se movem sem motor) e por isso os medievais inventaram a teoria do impetus. Esta, por sua vez, foi superada pela lei da inércia.

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  5. Tiago, olá de novo.

    Esclarecendo...

    Você se referiu ao argumento do item "a". De qualquer modo, vamos ao seu exemplo da reta. Primeiramente, a reta - conjunto infinito de pontos - não existe realmente, ou ainda, nenhum objeto concreto real é uma reta, porque os pontos, por definição mesmo, não têm dimensão, ou seja, não têm extensão, portanto nenhum corpo é um ponto, muito menos um conjunto infinito de pontos.

    Com relação à infinitude da reta, estamos trabalhando no plano das ideias e não no plano real, pois neste caso seria preciso nos ser evidente ou ser demonstrada a existência de uma reta infinita. De qualquer modo, você mencionou "Uma reta pode ser dividida em dois segmentos de reta", ainda que com terminologia errada. Supondo a reta infinita, se pudermos dividi-la ela não será dois segmentos de reta, que por definição são finitos: têm começo e fim. Teríamos, então, duas semirretas. A semirreta de um lado vai ao infinito e de outro lado termina em um ponto.

    A questão é a seguinte: como dividir o infinito? Quanto é ∞/2? O problema é que o infinito não é número, então não faz sentido dividir algo infinito.

    O infinito pode ser potencial ou atual. Suponhamos o segmento de reta, que é finito e que corresponde a objetos reais. Ele é infinito potencialmente, quer dizer, podemos aumentá-lo ou diminuí-lo infinitamente. Por exemplo, um segmento de reta de 1cm de comprimento pode ser aumentado para 2cm, depois para 3cm, para 100cm, para 1000cm, tendendo ao (comprimento) infinito. Podemos aumentá-lo infinitamente, porque a numeração (sendo aumentada) tende ao infinito, tem potência para o infinito, mas nunca é infinita em ato, porque sempre podemos acrescentar ou subtrair uma unidade.

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    Na estrutura do argumento cosmológico que você apresentou, p2 não é premissa. Tudo o que se move é movido por outro (p1). Conforme mostrei no item "b" (e isso é muito importante, por não compreender isso é que alegam que o argumento cosmológico não prova a existência de Deus, ou do motor imóvel enfim), para acontecer neste ser o movimento de potência de uma qualidade x a ato da qualidade x, é preciso que este ser esteja sob a ação de um ser EM ATO. Quer dizer, no ser que muda, a potência precede o ato, mas para haver o movimento (a mudança) o ato precede a potência. Se regredimos infinitamente, colocamos a potência precedendo o ato, logo o movimento não existiria, o que é falso. Portanto, é preciso existir um primeiro motor imóvel, ou seja, que não sofra movimento, sendo ato puro. Este motor, além de imóvel e ato puro, deve ser infinito, pois não pode ter potência nem para aumentar nem para diminuir, senão não seria imóvel nem ato puro. E deve ser simples, pois se fosse composto teria potência para ser dividido. Deve ser absolutamente perfeito, pois se fosse mais ou menos perfeito estaria sujeito à mudança, não sendo imóvel portanto. E deve ser único, pois, se houvesse mais de um deste motor, eles deveriam diferir entre si por perfeições diversas e assim não seriam absolutamente perfeitos.

    Por fim, quando se diz "movimento" em Metafísica, não se trata apenas do movimento local, mas é um termo que designa a mutação, a mudança, ou melhor dizendo, a passagem da potência ao ato.

    O exemplo do movimento retilíneo uniforme da Física não invalida o princípio da Metafísica de que tudo o que se move é movido por outro, desde que compreendido o significado de "movimento". Um corpo em movimento retilíneo uniforme, com velocidade constante e aceleração 0, não entrou em movimento (local) sozinho, teve de ser movido por outro. Esse questionamento da p1 em nada atrapalha o argumento cosmológico.

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  6. Oi Marcos.

    Uma curiosidade, vc é tomista? É muito bom passar por essa "disputatio" contigo. Obrigado pela oportunidade.

    Eu realmente queria dizer semirreta e não seguimento. Perdão pelo erro.

    Confesso que essa sua resposta ainda não me convenceu (entenda: não convenceu de que existe NECESSARIAMENTE um primeiro motor embora eu esteja convencido da possibilidade de um primeiro motor - isto é, creio que Deus existe)

    No seu primeiro comentário vc diz que coisas como o teorema de pitágoras permanecem. No último diz que retas não existem. Seu argumento da finitude do universo também não procede. O universo pode ter uma infinidade de seres finitos (cada qual divisível) embora o universo permaneça infinito.

    Vc também diz que movimento é apenas um tipo de mundança (de acordo com Aristóteles vc está corretíssimo), mas isso quer dizer que movimento físico É um tipo de mudança e, portanto, uma refutação física da explicação aristotélica do movimento falsifica a afirmação de que tudo que move é movido por algo (pelo menos não vale para o movimento físico).

    A afirmação de que todo corpo em movimento retilíneo foi colocado nesse estado por um motor é gratuita. Nada impede que esse seja um estado natural e eterno (a menos que algo interfira) deste corpo. Dizer que não é assim porque o universo é finito é forçar a conclusão para sua causa.

    Mas, sinceramente, o que eu pedi no meu primeiro e no segundo comentário era que vc explicasse porque não podemos ter mais do que 1 primeiro motor. Sobre isso, gostaria que vc me esclarecesse:

    a) Pelo argumento cosmolõgico é possível uma causalidade circular? A causa B que causa C que causa A? (ex: O cigarro causa a baixa de certa substância no corpo que causa ansiedade que causa vontade de fumar...)

    b) é possível com as premissas do argumento cosmológico pensar em vários primeiros motores, assim como penso na minha árvore genealógica? Sou causado pelos meus pais (2 causas) que são causados pelos pais deles (4 causas) que são causados pelos pais (8 causas) etc.

    Outro exemplo possível retirado dos filósofos pluralistas : um sem número de átomos pode causar as coisas como conhecemos?

    Podemos ter 4 motores imóveis atuando nas mudanças?

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  7. Tiago, o prazer é meu também.

    Sim, me afino com o Tomismo, ou talvez com o Neotomismo no sentido de relacionar os princípios da filosofia tomista com os dados da ciência moderna, por exemplo, mas não tenho educação formal em Filosofia nenhuma.

    1. Teorema de Pitágoras

    Disse que ele continua sendo o mesmo da época dele, que não mudou. Não disse que ele é eterno, que existe desde sempre. Talvez seja esta a confusão.

    2. Retas

    Na definição de "reta" não consta um conjunto infinito de pontos? Pontos, por definição, não são sem extensão? Tudo que é corpóreo tem dimensão, logo os pontos, conforme são tratados na Geometria, não existem concretamente, realmente; por conseguinte, nem as retas. Isto é algo de que me lembro bem do tempo de cursinho. Sempre tentava encontrar alguma coisa que fosse ponto perfeito, mas qualquer coisa teria uma dimensão, por menor que fosse. É o tal problema entre o plano "ideal" e o "real" nas ciências naturais como Física, Química... Uma matéria é sobre os gases. Calcula-se pressão, volume etc em hipóteses ideais, ou seja, se tudo ocorresse perfeitamente o gas se comportaria de tal maneira, com tais valores, mas na realidade os gases não são ideais e sim reais, e assim haverá discrepância, por menor que seja, nos valores calculados no papel (idealmente) e os encontrados nos experimentos (realidade). Talvez tenha me feito claro com os termos usados.

    3. Universo

    Se o universo tem uma infinidade de seres finitos, então o universo é infinito. A questão é se o universo tem, ou é composto de, uma infinidade de seres finitos.

    Suponhamos uma linha composta de 3 bolinhas, que são seres finitos (e têm extensão). À medida que aumentamos 1 bolinha em cada extremidade, a linha terá 5, 7, 9, 11... bolinhas tendendo a ser infinita. Ora, o que é infinito em ato não tem limites. Então se eu tivesse uma linha infinita de bolinhas, ela não seria limitada por, por exemplo, um certo número de bolinhas. Mas o universo não é ilimitado, e sim limitado, porque é composto de matéria, e a matéria é o princípio que limita o ser.

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  8. 4. Movimento

    "Movimento" é toda passagem da potência ao ato, e não um tipo de mudança. São exemplos de movimento: a mudança de temperatura, a mudança de cor, a mudança de posição ("movimento local") etc.

    No movimento retilíneo uniforme, a força resultante é zero, o corpo não está acelerado, tendo velocidade constante. O fato é que ele está em movimento, no caso movimento local. E aqui não estamos considerando as condições reais de atrito etc. Realmente, se um fenômeno pertinente à Física é verificado e viola um princípio metafísico, há algum problema.

    De qualquer modo, o corpo (qualquer que seja) que está em movimento retilíneo uniforme ou começou a se mover (ou ainda, sofreu uma passagem de potência a ato), ou move-se desde sempre. Se ele se move desde sempre, o movimento dele não tem princípio; se não tem princípio que originou o movimento, como o corpo pôde se mover? Este problema recairá sobre a regressão ao infinito e novamente entrará a questão de entender como se dá o movimento.

    O corpo está se movendo sobre uma reta em movimento (retilíneo) uniforme. As últimas três posições dele até o momento foram, suponhamos, x, y, z. No momento, ele está na posição z em ato. Anteriormente, estava na posição y em ato e z em potência. Antes de estar em y em ato, ele estava na posição x em ato e y em potência. O movimento é a passagem da potência ao ato. O último movimento (MUDANÇA NO SER) foi POTÊNCIA (da posição z) para ATO (da posição z). Nada muda sozinho. O corpo não pôde passar da potência (da posição z) para o ato (da posição z). Antes de estar em ato na posição z, ele estava em y com potência para z. Mas o MOVIMENTO da POTÊNCIA (de z) para o ATO (de z) só pode acontecer SOB A AÇÃO DE UM SER EM ATO anterior à POTÊNCIA (de z). É este ato quem atualiza a potência, de modo que haverá o movimento da potência de y para z. Isso, como já disse, precisa ser compreendido para que se possa entender que não podemos regredir infinitamente.

    Continuando a regressão, chegaremos à posição a. Se supusermos que desde sempre este corpo está se movimentando, estaremos contrariando o princípio do movimento citado acima: o de que, para que haja movimento (qualquer espécie de mudança que seja - de local, entre outros), o ser que passa da potência de uma qualidade XXX para o ato desta qualidade XXX precisa da ação de um ser EM ATO, ou seja, o ato precedendo a potência. Se supusermos a potência precedendo o ato, não faz sentido. Desta forma, não haverá movimento porque a qualidade XXX em potência não existe ainda, já que está em potência, então não passará a existir (em ato) do nada.

    Cai no mesmo problema que já citei 2 vezes, eu acho.

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  9. 5. Primeiro motor

    Repetirei o que escrevi antes, com alguns acréscimos.

    Como não podemos regredir infinitamente, é preciso existir um primeiro motor IMÓVEL, ou seja, que não sofra movimento, sendo ATO PURO, porque se tiver potência para um ato qualquer não é mais imóvel. Este motor, além de imóvel e ato puro, deve ser INFINITO, pois não pode ter potência nem para aumentar nem para diminuir, senão não seria imóvel nem ato puro. E deve ser SIMPLES, pois se fosse composto teria potência para ser dividido. Deve ser ABSOLUTAMENTE PERFEITO, pois se fosse mais ou menos perfeito - quer dizer, se tivesse uma certa perfeição (como bondade, beleza, justiça etc) em maior ou menor grau - estaria sujeito à mudança (tornar-se mais ou menos perfeito), não sendo imóvel portanto. E deve ser ÚNICO, pois, se houvesse mais de um deste motor, eles deveriam diferir entre si por perfeições diversas (um é melhor, mais belo, mais justo... que outro) e assim não seriam absolutamente perfeitos.

    a) A causalidade circular, mesmo que as coisas se movimentem circularmente, não explica a fonte do movimento. Aqui a ideia de "função" em Matemática se mostra interessante. Por exemplo, y = ax + b. Quer dizer, para sabermos o valor de y precisamos do valor de x. Só que x = az + b. Então para saber o valor de x, e consequentemente de y, precisamos saber o valor de z. Só que digamos que z = ay + b. Quer dizer que para sabermos o valor de z precisamos saber o valor de y, que é justamente o valor que objetivamos encontrar. Em outras, palavras, y não está definido enquanto x não está definido; x não está definido enquanto z não está definido; e z não está definido enquanto y não está definido. Enfim, não se pode achar o valor de ninguém, porque um está amarrado no outro circularmente. Então, eu preciso definir, "causar" um valor numa variável para que as outras assumam algum valor, supondo claro que "a" e "b" são constantes com valores definidos. Da mesma forma, a causalidade circular não vai explicar, mesmo que os elementos se movam circularmente, a origem do universo como um todo.

    b) É claro que não, conforme dito acima.

    Se o seu "sem número de átomos" se refere à infinitude, o problema está na infinitude do universo: se é infinito ou não, se tem um número infinito de átomos ou não.

    Apenas um motor imóvel.

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    Acho que tem havido alguma confusão por causa do uso de termos técnicos: movimento, perfeição etc. Para referências bibliográficas, olhe no meu blog na página de referências biblográficas. Vários livros você encontra na internet. Até a próxima.

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