29 novembro 2010

"Filosofia não tem lógica!"?

Como professor de filosofia, várias vezes escuto algumas rejeições e resistências por parte de alunos à disciplina filosofia: "Professor, filosofia não tem lógica!". Com essa afirmação penso que os estudantes querem dizer que não veem sentido no estudo de filosofia ou que os filósofos com que acaso tiveram contato nos estudos diziam coisas tão absurdas que não deveriam ser levados em consideração.

Se os alunos afirmam isso com lucidez e convicção, então eu preciso fazer um mea culpa de não ser capaz de mostrar a solidez argumentativa de vários filósofos no tratamento de certos problemas filosóficos que ocupam  os livros didáticos do Ensino Médio. Além do mais, fica uma sensação de fracasso profissional se a disciplina que leciono não se torna minimamente interessante para os jovens e adolescentes para quem dou aulas.

Mas se os alunos falam assim por entender que a filosofia traz certa perplexidade e os filósofos têm uma estranha mania de dizer coisas não óbvias (no que concordo plenamente), então preciso discordar da afirmação de que falta lógica à filosofia. 



Primeiramente eu poderia me felicitar por causar nos meus alunos perplexidade e inquietação. É o mesmo sentimento demonstrado pelo jovem Teeteto no diálogo escrito por Platão quatro séculos antes de Cristo. No diálogo, o personagem Sócrates elogia Teeteto por se admirar e espantar com os argumentos ali discutidos. No texto, Sócrates é categórico: "a filosofia não tem outra origem"...

Segundamente (se existir essa palavra), não é possível que a filosofia careça de lógica, pois foi justamente por sobrepor um discurso racional (logos) ao discurso mítico tradicional (mythos) que surgiu uma atividade como a filosofia. Não há na filosofia um argumento que não pretenda ser válido e nenhuma proposição que não pretenda ser verdadeira. Do contrário, para que se prestaria?

Talvez a confusão seja causada por desconhecimento do que seja lógica, a saber, a ciência da argumentação válida. A lógica ajuda a avaliar se as conclusões que os filósofos e demais seres pensantes (consideramos aqui que filósofos são seres pensantes) tiram em suas reflexões podem ser sustentadas pelas razões (premissas) apresentadas. Quando as premissas sustentam a conclusão, o argumento é válido. Mas isso não significa que as premissas ou a conclusão sejam verdadeiras. Ninguém utilizando unicamente as ferramentas da lógica poderia saber se a lua pertence mesmo ao sistema solar, ou se os metais conduzem energia, ou ainda que Sócrates é mortal. Mas qualquer pessoa que saiba 1) que a lua é um satélite da Terra e 2) que a Terra está no sistema solar, sabe que 3) a lua está no sistema solar. Isso é lógico! As premissas 1 e 2 sustentam a conclusão 3. A verdade de 1, 2 e 3, porém, só pode ser estabelecida empiricamente ou seja, com a experiência. 

Voltemos à questão se a filosofia tem ou não lógica... o que pode ocorrer é que os alunos discordem dos filósofos (o que me deixaria tremendamente feliz). E neste caso há duas maneiras de mostrar como discordamos de uma conclusão de qualquer filósofo: ou mostramos que logicamente o argumento é inválido - sua conclusão não decorre das premissas, ou recusamos a verdade de pelo menos uma das premissas. No primeiro caso usamos a lógica recusar um argumento, no segundo caso assumimos que a lógica está impecável, mas que as razões que sustentam a conclusão eram falsas. Em ambos os casos, a lógica é indispensável.




5 comentários:

  1. Só para dar nomes aos bois: um argumento pode ser válido (conclusão se segue das premissas), embora não ser correto (nem todas as premissas são verdadeiras). E um argumento pode ser correto (ter todas as premissas verdadeiras), e não ser cogente (não ter as premissas mais prováveis do que a conclusão.
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    Ressaltando, como disse Tiago, só há duas formas de se objetar contra um certo argumento: ou rejeitamos o método lógico que utilizamos para derivar a conclusão das premissas, ou rejeitamos que alguma das premissas é verdadeira. Se um argumento é válido [dedutivamente] e se as premissas são verdadeiras, então não há como a conclusão ser falsa.
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    Por exemplo, só poderiamos rejeitar a conclusão Q do argumento Se P, então Q. P. Logo, Q., ou se rejeitássemos o método lógico chamado modus ponens -- o que não seria saudável, pois nos impediria de usar o modus ponens outra vez --, ou se rejeitássemos que "P" é verdade, ou se rejeitássemos que "Se P, então Q" é verdade.
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    Um exemplo menos abstrato: (1) Se Maria não está no cinema, ela está em casa. (2) Maria não está no cinema. (3) Logo, Maria está em casa. Só podemos rejeitar a conclusão 3, se rejeitarmos que a condicional 1 é verdadeira, ou se rejeitarmos que Maria não está no cinema, ou se rejeitarmos o próprio modus ponens (a regra que diz que se temos "se P, então " e se temos "P", então temos de ter "Q").
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    Mas acredito que o que os alunos querem dizer qdo falam q a filosofia não tem lógica é ou que eles não conseguem perceber a conexão entre as premissas e as conclusões, ou que eles acham as conclusões muito anti-intuitivas. O que é preciso ao professor nesse caso é ensinar bastante lógica e ensinar os estudantes a aprenderem a formalizar, ler e analisar argumentos (com os intrumentos lógicos adequados -- como o conhecimento de regras de derivação e de consequência lógica) (conhecimentos de teoremas metalógicos podem ser deixados para estudantes mais especializados).

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  2. Obrigado pela elucidação, Rodrigo!

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  3. Achei muito massa essa tua colocação, principalmente como professor.
    Eu sou aluna do ensino médio, e acho filosofia fascinante, por causa disso me torno meio que uma estranha para sala... mas normal.
    O fato de nós estudarmos coisas que não foram substancialmente validadas na prática ao longo da história aborrece um pouco a maioria dos alunos, é notável... a verdade é que muitas vezes o contextos histórico é desconsiderado, levando em conta apenas o ponto final dos pensamentos e teorias filosóficas...
    Até o pensamento se tornou um fast food.
    Parece que é difícil de notar que as coisas nem sempre estiveram tão claras e que foram essas tentativas aparentemente 'falhas' que nos conduziram e ainda nos conduzem para uma evolução.

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  4. Boa tarde, Tiago. Deixo aqui sugestões de temas escabrosos:

    - A existência de Deus;
    - O livre-arbítrio;
    - O evolucionismo;
    - A verdade;
    - Filosofia e as outras ciências (filosofia ser-lhes superior);
    - A objetividade da beleza;
    - O subjetivismo;
    - Estética e obras de arte;
    - Homem: corpo material e alma espiritual;

    Além de inserir no blog um pesquisador de palavras, assim fica mais fácil encontrar os textos.

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  5. Oi Marcos. Obrigado pelas sugestões. Pensarei e tentarei postar sobre esses temas.

    Quanto ao pesquisador, há um no topo do blog, do lado esquerdo. Basta inserir a palavra buscada. Aliás, o tema da existência de Deus eu já abordei no artigo "Minha filosofia da religião". Basta pesquisar no campo do topo esquerdo.

    Agradeço muito a sua apreciação sobre meus textos, esse retorno é muito importante pra mim.

    Abraços,
    Tiago

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