20 outubro 2010

O lugar da História da Filosofia

(ou: Do falso dilema entre aprender filosofia e aprender a filosofar)

Frequentemente percebemos em materiais didáticos de filosofia um uso muito distorcido da citação de Kant, segundo a qual

(...)não é possível aprender qualquer filosofia; [...] só é possível aprender a filosofar, ou seja, exercitar o talento da razão, fazendo-a seguir os seus princípios universais em certas tentativas filosóficas já existentes, mas sempre reservando à razão o direito de investigar aqueles princípios até mesmo em suas fontes, confirmando-os ou rejeitando-os.” (KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1980. P. 407.)
Essa intuição kantiana dá margem a alguns problemas e sua avaliação superficial por parte dos pedagogos e professores de filosofia é responsável pela imensa disparidade existente entre currículos do Ensino Médio de escolas diferentes. Em termos práticos significa que uns professores preferem tratar apenas temas filosóficos  (identificando o estudo de temas com o "aprender a filosofar") outros entendem que o ensino de filosofia passa pelo produto de todos esses anos de pensamento filosófico ocidental, reunindo os principais filósofos e suas ideias em períodos cronológicos e lecionando esses blocos.  Obviamente os adeptos dos temas julgam que essa segunda maneira corresponde ao "aprender filosofia" e levaria o aluno a somente reproduzir ideias. Para nós, isso soa como um falso dilema.

A frase kantiana permite formular o problema da seguinte forma:

Ou aprende-se filosofia ou aprende-se a filosofar
não se aprende filosofia
Logo, só se aprende a filosofar

É um argumento válido e, do ponto de vista pedagógico, relevante caso aceitemos a verdade das premissas. Mas  para aceitarmos a verdade das premissas é preciso ter clareza do que significa "aprender a filosofar" e "aprender filosofia". 

O próprio Kant nos ajuda nessa tarefa: filosofar é exercer o talento da razão, seguir seus princípios universais em certas tentativas já existentes. Portanto, nada aqui indica a exclusão da história da filosofia no aprendizado da atividade filosófica. Só requer que o ensino da história da filosofia seja também ele uma atividade filosófica. 

Agora podemos identificar a falácia em que muitos educadores incorreram:

Ou temas ou História
História não é filosofia
Logo só podemos ensinar temas filosóficos

A disjunção (temas ou história) é uma má interpretação da citação kantiana, que mais propriamente poderia ser assim feita:

ensino não filosófico da filosofia (história + temas)  ou ensino filosófico da filosofia (história + temas)

Obviamente o professor de filosofia deve optar pela opção filosófica de ensino, seja pelo tratamento filosófico de temas relevantes para a filosofia (como ética, política, estética e teoria do conhecimento) seja pelo tratamento filosófico das ideias de filósofos ao longo da história. Seria também desnecessário falar que ao abordar temas, o professor precisa recorrer aos filósofos ao longo da história e ao abordar história da filosofia precisa mostrar os diversos temas que um pensador problematizou.

Os professores que preferem trabalhar com temas fazem essa escolha esperando que a colocação de problemas  filosóficos crie a necessidade dos alunos buscarem uma resposta crítica e bem refletida, atingindo em parte o ideal de "aprender a filosofar". Mas para bem filosofarem, precisarão verificar como alguns filósofos trataram o tema, as objeções que levantaram, os argumentos mais convincentes. A história da filosofia seria necessária não pelo valor histórico ou pela importância que uma ideia teve em determinada época, mas pela relevância na solução ou na problematização de uma solução em determinado tema.

Por outro lado, alguns professores preferem lecionar história da filosofia. O cuidado que devemos ter ao ensinar a história é imaginar que basta saber o que disseram os pré-socráticos, ou os filósofos clássicos ou os modernos etc, para despertar a atividade filosófica nos alunos. Creio que é preciso também mostrar erros de argumentação nesses filósofos, instigar os alunos a opinarem filosoficamente sobre as ideias defendidas por um autor. Entendo com essa atitude que o aluno pode discordar e deve buscar argumentos para sustentar suas próprias ideias discordantes das dos grandes filósofos. Aliás, a história da filosofia está recheada de exemplos de como fazer isso. Foi o que Platão fez com Heráclito e Parmênides, ou Aristóteles com relação a Platão, Bacon com Aristóteles, Descartes com a tradição escolástica,  Hume com Descartes e Bacon, Kant com Hume. 

Nesse sentido, ao contrário do que muitos professores pensam, a história da filosofia pode, de fato, ensinar a filosofar, basta que não tenhamos medo de quebrar a "sacralidade" dos filósofos "importantes", de analisar a verdade e coerência de suas ideias. 

Quem sabe assim, dentro de poucos anos, os estudantes de pós-graduação em filosofia do Brasil deixem de apresentar teses e dissertações sobre o pensamento alheio e passem a sustentar uma verdadeira ideia filosófica relevante o suficiente para podermos falar que há uma filosofia brasileira?



4 comentários:

  1. O problema é sempre saber como isso será feito. Primeiro, como irá falar sobre a relevância de se estudar os pensadores pré-socráticos? Depois, como explicar de uma maneira interessante e que desperte interesse sobre os problemas que esses filósofos se debruçaram? Depois, como apresentar seus argumentos e as ponderações ou críticas que fizeram a outros pensadores sem com isso criar a idéia de que na filosofia vale tudo e que ao fim não temos certeza de nada, ou importância alguma, visto que só há conflitos, discordâncias e consenso mínimo. Então, como justificar a adolescentes a importância desse estudo sem cair na história de que mais importante são as perguntas do que as respostas.

    Como justificar dentro desse contexto a importância de ler atentamente os textos filosóficos?

    Penso que os alunos começarão a filosofar a partir do momento que forem dados a eles as ferramentas para isso (e que fique bem claro e bem concreto, com muitos exemplos) e a partir do exercício de pequenos textos filosóficos. Também, como disseste, a partir da leitura e análise cuidadosa de textos de grandes filósofos (cabe ao professor selecionar textos que mostrem isso de maneira clara).

    ResponderExcluir
  2. Pois é, Daniel. Para que o ensino de filosofia seja filosófico (para que o aluno possa habituar-se ao exercício da reflexão filosófica) é necessário que o professor seja também filósofo, no sentido de fazer uso do instrumental lógico e crítico da filosofia.

    Algumas ideias de fato só têm valor histórico. Acho que devemos ser muito sinceros sobre isso com nossos alunos (pois se o que buscamos é a verdade, não é possível acreditar que tudo veio da água ou dos 4 elementos - a ciência atual tem explicações melhores). Outras ideias, felizmente, têm grande relevância em determinada investigação filosófica.

    No caso dos pré-socráticos, eu sempre lembro meus alunos que eles representaram uma virada significativa no pensamento ocidental ao buscar um princípio natural que explicasse a natureza. Além disso eles eram críticos em relação aos outros. Então podemos imitá-los no método, embora discordemos das respostas...

    O problema da relativização pode ser combatido com argumentos. Dispomos de boas refutações ao relativismo (uma delas pode ser acessada neste blog mesmo: http://estadonoetico.blogspot.com/2010/09/sobre-liberdade-e-relativismo.html

    Penso que o problema da desconfiança por parte dos alunos sobre a importância do estudo filosófico em parte é causada pelo tratamento oficial dado à disciplina por parte das autoridades (pouca carga horária, professores não formados na área, ausência de filosofia no ENEM e em outros concursos, impossibilidade de reter o aluno por mal aproveitamento na disciplina etc.) Em parte o desprezo por filosofia também ocorre por causa de uma má compreensão do que seja o instrumental filosófico, fruto de uma má formação nas licenciaturas brasileiras que leva o graduando a pensar que estudar filosofia se resume ao estudo da história da filosofia e que o estudante brasileiro deve se limitar a compreender o pensamento alheio, numa "sacralizaçao" dos filósofos. Ora, enquanto os filósofos da história forem intocáveis, nós continuaremos sendo apenas reprodutores e nunca produtores de filosofia.

    ResponderExcluir
  3. Caro Tiago!! Ainda não tive o privilégio de atuar em sala de aula.....somente nos estágios é que tive contato direto com alunos.....Mas vou colocar algo de intrometida, pois não tenho a experiêcnia de vcs: Como fazer em sala de aula, o que não tivemos nem na graduação? explico: para termos uma ideia prática de como seria a diferença entre o "filosofar" e o "ensinar a filosofar", se na graduação apensa tivemos contato com o segundo??
    Amplexos...

    ResponderExcluir
  4. Oi Evelise. Não és de maneira alguma intrometida. Aliás, é uma boa questão para pensar a formação de professores. Uma graduação que não incentive o estudante a filosofar é uma lástima para a faculdade que ostente um curso superior de filosofia e uma lástima ainda maior se pensarmos que os formados nesta área serão os professores que nossos jovens terão. Se não souberem filosofar, o que ensinarão?

    Olha Evelise, se o graduado ama de fato a filosofia, ele procurará inteirar-se das discussões filosóficas atuais, fará leituras constantes, exercerá o instrumental crítico filosófico... Mesmo se sua formação foi deficiente. Aliás, estamos nos formando a vida inteira.

    Eu tive uma péssima professora de lógica e um professor de filosofia da ciência que, apesar de ótimo professor, tinha como área de pesquisa a metafísica (era um quebra galho no curso). Isso não me impediu de querer estudar Lógica e Filosofia da Ciência no mestrado, mesmo que seja mais difícil para mim do que para outro aluno que teve boa formação na área.

    Aliás, acho que uma resposta bem simples ao seu questionamento é dizer que devemos muitas vezes ser os professores que não tivemos, mas gostaríamos de ter

    ResponderExcluir