12 novembro 2008

Do desejo e da necessidade



Tive oportunidade de escrever muito brevemente sobre essas duas coisas: necessidade e desejo. [1] Mas um recente diálogo com uma amiga me despertou para aprofundar nesse tema. Vou situar a conversa para que o leitor entenda melhor o que quero dizer.

Eu estava comentando sobre minha vontade de comprar um carro (não que eu tenha dinheiro para tal), falando de como esse objeto poderia facilitar a minha vida. Moro numa capital, preciso me deslocar por grandes distâncias e depender de ônibus em Belo Horizonte é uma coisa que só os habitantes dessa cidade sabem como é triste. Nada de mais até então. Até então, repito...

Quando disse que pensava num modelo ano 2000, popular, minha amiga teve uma clara decepção e disse preferir juntar dinheiro para comprar um carro esportivo do ano. Estávamos num barzinho e, bem, esse não é um lugar para discutir diferenças pessoais, não é mesmo?

O fato é que essa conversa rendeu-me uma reflexão: onde residia de fato a diferença de opinião entre minha amiga e eu? Por que ela se decepcionou de saber que eu não queria um carrão esporte, mas um popular usado? Afinal voltei a reflexão para a distinção entre necessidade e desejo.

Meu problema de locomoção se resolve com um carro (qualquer um). Em outras palavras, trata-se da necessidade de deslocamento rápido e de evitar perda de tempo e atrasos. Não necessito de um EcoSport, mas de um carro. Aqui encontro talvez uma diferença entre meu modo de pensar e o de minha amiga.

No artigo em que escrevi sobre a temperança, falei de necessidade como fome e sede. Mas nem só de pão vive o homem...

Além da fome e da sede, que são evidentemente necessidades básicas, há um elemento chamado desejo. E o desejo desperta em nós uma atração irresistível para um objeto que parece nos prometer mais do que ele mesmo é. Acho que essa é uma boa definição de desejo: uma promessa na qual acreditamos e que, porém, nunca será cumprida. É o paradoxo do qual Freud já falava em seus escritos: nossas pulsões provêm de uma fonte inesgotável e nunca serão saciadas inteiramente, só simbolicamente através de mecanismos sutis ou sublimadas em um esforço de transcendê-las.

A grande questão é que pouquíssimas pessoas têm força de vontade e grandeza de caráter o suficiente para tentar a via da sublimação. Então nossos esforços voltam-se para a realização incompleta dos nossos desejos através dos vários objetos que nos prometem uma parcela de felicidade.

Acredito que o maior erro de Karl Marx foi ter pensado que os seres humanos ficariam felizes com a satisfação das necessidades. Que as pessoas se contentariam com uma sociedade sem fome, sem carências materiais, sem classes sociais. Pois o socialismo idealizado por esse pensador visava acabar com a carência material e a desigualdade social. Falando abertamente, o Comunismo se voltava para a necessidade dos seres humanos inseridos nesse sistema econômico. O erro aí foi desprezar a força do desejo.

O Capitalismo, ao contrário, mesmo criando um fosso colossal entre ricos e miseráveis, e dependendo da exploração das massas para sua manutenção, focou-se no ponto fraco do ser humano: o desejo. Esse sistema econômico tem uma capacidade enorme de transformar desejos em necessidades. Por via da propaganda, da ostentação e da moda, muitos produtos acessórios tornam-se “obrigatórios”. Aquilo que até ontem nem existia passa a ser o objeto de urgência de hoje. E nós nem nos damos conta desse processo, dessa manipulação do nosso desejo.

É que o capitalismo trabalha o simbólico, mais do que com o útil. E o simbólico mexe com estruturas internas do ser humano, tal como a religião e a arte. Marx chamou a isso “fetiche da mercadoria”. Passamos então para um último item dessa reflexão: o consumo.

O consumo é o meio pelo qual o capitalismo se sustenta. Poderíamos falar que é o detalhe mais importante desse modo de produção. Toda crise no capitalismo é também uma crise de consumo.


Pois bem, todos os produtos são criados para serem consumidos. Caso não sejam consumidos, o marketing incumbe-se de criar a sensação da necessidade desses produtos nos consumidores. Depois de consumidos, o mercado realiza outra façanha: torna os produtos já consumidos rapidamente obsoletos. Nesse sentido entra o papel imprescindível da moda e da estética. Nem é preciso que o produto se degenere, a mudança na aparência das mercadorias causa a impressão de que as compras do semestre passado são do tempo das cavernas. Basta repararmos como os computadores se desatualizam rapidamente (a tela plana faz o monitor comum parecer uma máquina de escrever).

Sendo assim, fazemos a seguinte pergunta: se o desejo é de tal forma infinito, é possível escapar do consumismo a que ele nos direciona? Eu tenho a tese otimista que sim, é possível! É claro que o leitor vai me perguntar como...Respondo: com um pouco de racionalidade. Simples assim? Não, de modo nenhum é simples. Demandaria refletir sobre o que é necessário, o que é útil e o que é simplesmente produto dos caprichos do desejo. Seria preciso rever nosso padrão de consumo. Seria igualmente preciso entender as conseqüências do consumismo para nosso planeta desde a extração de matéria-prima, passando pela produção em escalas absurdas (com a poluição que advém dessa produção), até o problema do lixo e dos aterros sanitários.

Por fim, gostaria de sugerir um vídeo inspirador sobre essas questões. Intitula-se “A história das coisas” e fala de todo esse processo cujo principal elo é o consumo: http://www.unichem.com.br/videos.php (esse vídeo ficou melhor no link do que no youtube)

8 comentários:

  1. Conhecer seu blog foi uma surpresa agradável. É sempre bom encontrar pessoas que têm percepção, que conseguem ver além do que é aparente. Vou te ler sempre (isto é uma ameaça...rs*). Continue.

    Abraços,

    Janete.

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  2. Puxa, supresa agradável é saber que há pessoas realmente lendo e acompanhando o que escrevo...
    Volte sempre!!!!

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  3. Interessante Tiago.
    Não sei se você aceitará essa pobre observação de um aluno de ensino médio, mas lá vai:

    Como saber se depois da implantação do comunismo, o consumismo exarcebado continuaria a existir?
    Levando em consideração que o comunismo nunca existiu e sim apenas o socialismo, não podemos afirmar com certeza se realmente o desejo deixaria de existir.
    Na minha opnião, o erro de Marx foi outro. E você sabe qual foi.

    No mais, a sua reflexão paraceu-me válida e muito inteligente.
    |<>|

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  4. Toda observação é bem vinda nesse blog. Sinta-se à vontade...

    Quanto ao desejo, penso que ele é constituinte do ser humano, antecedendo o capitalismo, sendo mesmo responsável pelas atitudes do ser humano procurar dominar o fogo, construir instrumentos, tecer roupas quentes etc. Caso não tivesse desejo de mais conforto, teria permanecido no estágio primitivo.

    Mas a constatação da existência do desejo não justifica a atitude consumista exagerada, que é provocada de fora pra dentro através da criação de falsas necessidades.

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  5. Estava pesquisando sobre Filosofia e acabei caindo aqui..

    Adorei o modo como expos sua ideia..de forma clara e leve! Fico mto feliz qndo vejo q existem pessoas como vc!!
    Estou escrevendo sobre o consumo de moda para um TCC e reflito justamente sobre isso..

    Parabéns!!!

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  6. Olá!
    Saudações freireanas!!!
    Gostaria de saber se você não ode disponibilizar o texto... É muito bom!!!
    Parabéns!
    Kety

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  7. posso sim... com a condição de que preserve os meus direitos autorais. Me envie um e-mail:

    tiagoluis@ymail.com

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