30 agosto 2012

As cotas e o desafio da educação

Dentre as muitas críticas que tenho lido a respeito da adoção de cotas para estudantes oriundos de famílias de baixa renda, dois argumentos parecem ser os mais razoáveis e, sem dúvida, os mais utilizados. O primeiro sustenta que separar vagas em universidades públicas para uma parcela de desfavorecidos da sociedade é uma medida injusta, diminuindo as chances de quem não se enquadra na categoria "desfavorecido" de alcançar uma das já disputadas vagas nas instituições federais. O segundo argumento faz uma crítica à qualidade do ensino básico público oferecido aos brasileiros, afirmando que se a educação pública fosse excelente não haveria necessidade de cotas. Assim a suposição é de que o governo deveria investir mais na educação básica se quiser incluir estudantes de baixa renda.


Como o primeiro argumento envolve um conceito filosófico de difícil definição que é "justiça", deixarei sua discussão por último. Analisemos, o que diz o segundo argumento:

Se o governo quiser incluir, então deve melhorar a educação
Se o governo melhorar a educação, então não precisará de cotas
Logo, se o governo quiser incluir então não precisará de cotas.

Um argumento válido, cujo nome é conhecido como silogismo hipotético. Ora, que professor não concorda com o que foi dito? É extremamente razoável querer melhorias na educação e almejar o dia em que não serão necessárias cotas pois todos terão escola de qualidade. Também estou de acordo que um investimento maciço em educação (escola integral, professores bem formados e remunerados, laboratórios equipados, biblioteca  atualizada, quadras para treinamento esportivo, aulas de música e artes, e tudo que formos capazes de sonhar) hoje poderá render um futuro de menos desigualdade. Mas tal investimento em educação só dá resultado a médio e longo prazo. 

Suponhamos que de repente nossa educação básica pública sofra uma reviravolta de qualidade (o que duvido muito, mas admitirei para fazer correr o argumento). Uma criança que hoje entra para a escola aos 6 anos, se tiver uma boa educação, só entrará para um curso bem concorrido de universidade pública após pelo menos 11 anos de educação básica.    Claro que nesse cenário ideal em que todos tiveram oportunidades iguais, o único critério de admissão é o mérito. 

Mas até que tenham transcorrido esses 11 anos, quantos jovens ficaram de fora da possibilidade de fazer um curso superior? Levando em conta que o nível escolaridade tem incidência direta na renda e na qualidade de vida do brasileiro, não creio que só a melhoria na educação seja suficiente para intervir na desigualdade social a curto prazo. Cotas sociais são a melhor maneira de possibilitar  uma educação profissional de qualidade aos bons estudantes de baixa renda (ainda que haja cotas, esses estudantes também precisam ser os melhores colocados para serem admitidos) que não tiveram oportunidade e dinheiro para estudar em escolas bem equipadas e com professores motivados. 

Há ainda um quesito cultural que me incomoda na argumentação anti-cotas é o que ocorre em outros setores como no de transporte e locomoção,   saúde e segurança. No lugar de perceber que são problemas de todos e cobrar soluções para todos por parte dos órgãos públicos competentes, a classe média simplesmente resolve o problema para si: na locomoção é só comprar um carro, na saúde pagar planos caros, na educação matricular os filhos na escola particular etc. Resolvido o "meu" problema, agora não preciso mais preocupar com essas questões públicas.

Desculpe o leitor se isso soa agressivo, mas é incompreensível para mim que alguém que pague caro para dar educação aos filhos diga simplesmente: "eu paguei para que meu filho estivesse em condições para garantir sua vaga na universidade pública, se o governo quiser que os pobres estudem em algum curso superior federal, que ele melhore a escola básica". Quem sempre resolveu seu próprio problema pagando pode pagar uma faculdade particular de qualidade (elas ainda existem). Por que é que ninguém briga para matricular o filho na escola pública, mas todos querem vaga na universidade pública? (Olha que temos greve nas universidades também!) 

Não pretendo dizer mais sobre o segundo argumento, só devo reforçar que as cotas não eximem o governo de buscar qualidade na educação básica (algo com o qual estou de acordo com os anti-cotas). Só não vejo porque deveria ser uma opção entre educação de qualidade ou cotas, já que a educação de qualidade resolve o problema a longo prazo e as cotas possibilitam diminuir a desigualdade a curto prazo.


O primeiro argumento a que aludi no início do texto diz respeito à pretensa injustiça cometida contra os não contemplados pelas cotas. Quero agora me debruçar sobre ele, pois penso ser bem mais frágil que o da melhoria da educação. 

Temos pelo menos duas definições de justiça: ou tratamos de equidade ou de dar a cada um o que é seu por direito. O argumento contrário às cotas parece referir-se ao primeiro, dizendo que as pessoas são tratadas de maneira desigual quando um grupo tem vagas reservadas e outro não. Mesmo pensando no segundo sentido da palavra, parece que um direito está sendo retirado de um grupo quando o governo reserva vagas em universidades somente para alunos de baixa renda. 

Acredito que as pessoas que sustentam que cotas são injustas cometem uma contradição. Elas querem igualdade na disputa por vagas da universidade federal quando não houve igualdade de condições para que a disputa fosse justa. Sejamos sinceros: ninguém é culpado por ter nascido num berço de ouro ou numa família pobre. Niguém pode ser responsabilizado porque possui certas necessidades maiores do que os outros. 

É por isso que ninguém se revolta quando lugares em teatros, cinemas ou vagas de estacionamento são reservadas para pessoas com mobilidade reduzida. Pelo mesmo motivo, somos todos favoráveis ao atendimento prioritário de idosos, grávidas e portadores de necessidades especiais. Todos aplaudem de pé iniciativas que facilitam a vida dessas pessoas que não podem ser culpadas por suas dificuldades. O postulado é muito simples: pessoas diferentes possuem necessidades diferentes

Não entrarei no mérito da questão racial, que para mim não é tão determinante do que a questão social. Sim, embora raros, existem casos de negros bem sucedidos cujos filhos possuem todos os benefícios econômicos que qualquer outro adolescente de classe média. Mas existem pessoas pobres, indiferentemente à sua cor, que não poderiam entrar numa universidade pública sem uma reserva de vagas. São justamente aqueles adolescentes que não poderiam pagar uma universidade particular, que tiveram uma educação básica deficiente (a mesma que gostaríamos muito fosse tão boa que pudesse dar condições de disputa de igual numa federal), que tiveram as aulas interrompidas por greves quase todo ano, que precisam trabalhar enquanto ainda cursam o ensino médio etc.

Esses adolescentes não são culpados pela sua situação financeira, nem pelo fato de que a educação básica pública é lastimável. Eles sem dúvida merecem uma chance tanto quanto qualquer outro candidato a um curso concorrido de universidade federal. Façamos a conta no lápis: quantos concluintes de escola particular e quantos concluintes de escola pública disputam a mesma vaga? A proporção é de 50%? Claro que não, a escola pública é responsável por 88,8% dos egressos do Ensino Médio. (Fonte: Senado). Se é para ser justo, as cotas deveriam abranger esse percentual. Um detalhe interessante é que se um aluno pobre formado por um instituto superior federal pode acender à classe média e dar ao seu filho uma oportunidade que ele não teria sem as cotas. 

Aliás, se é para ser justo, as vagas deveriam ser sorteadas entre os concorrentes. Seria a única maneira de garantir que todos tenham a mesma chance de estudar numa universidade pública. Mas enquanto a justiça e a igualdade não forem tão radicais, 50% de vagas para quem precisa está de bom tamanho.

4 comentários:

  1. Depois de ler tamanha ladainha nesse artigo, posso concluir o seguinte: ESCOLA PUBLICA NUNCA IRÁ PRESTAR. A Universidade Publica "prestava" (se você comparar com as universidades PRIVADAS de outros países, como por exemplo o EUA, a universidade publica brasileira passa longe de "prestava") por que você possuia um rigoroso filtro, onde só os bons alunos (90% vindo da escola privada) conseguia passar. Após essa medida, a médio prazo, o nivel das universidades publica irá decair, pelo simples fato de que a nota de corte de 80% passará para 50% ou 60%. Essa média, qualquer pessoa, que nem se quiser estudou para prestar vestibular, alcança. Investir em escola publica de nada irá adiantar. Há mais de 30 anos o estado vem fazendo isso, e praticamente nada mudou. Quer melhorar a educação brasileira? Abra o mercado para novas escolas privadas, acabe com toda regulamentação, dizime todos os impostos. Vamos ter, a médio prazo, escolas excelentes e a baixo custo. Para a população menos favorecidas, estarão as escola publica, que comportará um menos numero de alunos e facilitando (não muito) a administração. Sem mais.

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  2. Olá, anônimo. Então vc defende que a universidade pública permaneça sendo ocupada por maioria de alunos da rede privada. Em outras palavras, vc quer as coisas como sempre foram. Eu só não imagino como isso vai melhorar a educação superior ou servir aos propósitos de desenvolvimento do país, uma vez que as coisas sempre foram assim e o Brasil não se tornou uma potência de ciência e tecnologia. Bom o exemplo americano: pague para estudar. Faça melhor, estude por lá. Quanto às escolas particulares, a grande maioria é filantrópica e não paga impostos porque dá 20% de bolsas.

    Ah, se quiser criticar minhas ideias, não chame meu texto de ladainha, mostre porque meus argumentos não funcionam, assim como eu fiz com os argumentos contra cotas. Se eu estiver errado, ficarei muito grato em saber. Isso se chama diálogo. Da próxima vez (se houver) também peço a gentileza de se identificar. Sem mais.

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  3. Não Tiago, não defendo isso. Eu defendo um estado livre da coerção estatal. É simples entender a minha linha de raciocínio, mas tem que ter força de vontade e se livrar do pensamento estatista. A partir do momento em que você abre o mercado para novas escolas, desregulamentando todo o setor e acabando com todos os impostos da areá, as empresas não irão encontrar obstáculos e burocracias estupidas para se instalar e fornecer serviços de qualidade e/ou com um baixo preço, já que você terá uma alta concorrência, grande oferta. Seu argumento é falho pelo seguinte, as cotas não irão diminuir os problemas ou resolve-los, são como sempre uma solução de curto prazo. Com o tempo, as universidades publicas, que ainda tinha um pouco, bem pouco de qualidade, pelo "filtro" que existia nos vestibulares, irão perder seu "brilho". Os mais pobres continuarão sem oportunidades, já que o estado nunca consegue atender toda a demanda, somente o privado é capaz de suprir. Porém, no país, a forte regulamentação, altos impostos, inviabiliza a entrada de novas empresas que poderiam suprir as necessidades de pessoas de baixa renda. Simples. Meu nome é Vagner, tenho 20 anos. Seguindo os estudos da escola austríaca, defendo a liberdade. Desculpe-me pelo "ladainha".

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  4. E aí Thiago, Tudo bem?
    - Bom, gostei muito do seu texto, principalmente da analise argumentativa, concordo contigo sobre a simultaneidade das cotas e do investimento em educação básica de qualidade. Só sou contra as cotas pois ainda não vi um investimento bem planejado, de longo prazo e, principalmente, desvinculado de mandatos políticos e partidos. Explico: o que é gasto do PIB brasileiro em educação talvez seja até suficiente (5,7% - fonte: Veja), mas não é gasto de maneira correta, fora os desvios feitos(espero que nenhum petista leia isto). Mas vou direto ao ponto. O Chile - nosso vizinho! - foi um dos países que mais melhorou seus índices educacionais nas últimas décadas, eles montaram um plano de vinte anos, independente de mandatos e governantes, aumentando o investimento na área e, principalmente, aumentou os salários do professores, com diversas bonificações e prêmios de incentivo, além da meritocracia como fator de determinação dos diretores escolares. O problema do Brasil, é que a educação ainda é pauta de promessas de campanha, onde, quando são cumpridas, tem um limite de quatro anos para serem executadas e finalizadas! Com a educação NÃO pode ser assim, tem que ter o investimento de longo prazo, neste caso, e somente nele, concordo com as cotas em simultâneo para amenizarem a curto prazo o problema. Enquanto escrevia este texto, fiz algumas pesquisas que me entristeceram mais ainda, o link* mostra a máscara posta na nossa educação, os índices cresceram sim, mas não por conta da melhora da educação e sim porque as provas que medem os índices ficaram mais fáceis...é uma pena.
    Abraço,
    Juan Pablo

    *http://porvir.org/porpensar/brasil-e-terceiro-pais-melhorou-mais-em-educacao-em-15-anos/20120724

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