18 janeiro 2012

Veja e a Filosofia

Minha última postagem foi sobre os erros argumentativos do colunista Reinaldo Azevedo da revista Veja. Minha intenção aqui não é repetir meu posicionamento em relação ao desprezo daquela mídia para com a disciplina a que me dedico como professor e pesquisador (para ler clique aqui). O pensamento da revista sobre a "absurdidade" da lei de 2008 que fez a Filosofia retornar ao ensino médio depois de 37 anos reflete um desconhecimento do que seja filosofar. É claro que esse desconhecimento existe em todos os pais de alunos que não tiveram filosofia em sua educação formal, existe até mesmo em professores de outras disciplinas que disputam espaço no currículo ou que acabam lecionando filosofia no lugar dos licenciados formados na disciplina. Essa é uma ótima ocasião para dar a conhecer o que de fato é fazer filosofia e seu papel na educação básica.

É de se esperar que qualquer estudioso de uma determinada área do conhecimento humano saiba definir muito bem seu objeto de estudo. Provavelmente um biólogo não terá grandes dificuldades em dizer o que é a biologia. O mesmo podemos esperar de um físico sobre a pergunta “o que é física?”, ou de um historiador sobre a definição de história. Iremos ouvir detalhes sobre o campo de investigação desses pesquisadores e quais os métodos utilizados para justificar os conhecimentos específicos de cada área. Há geralmente uma certa unidade presente no discurso de pesquisadores da mesma área e o saber produzido, por exemplo, na química é mais ou menos aceito pela maioria dos cientistas da química.

O mesmo não ocorre com o pensamento filosófico. Para os filósofos, responder à simples pergunta “o que é filosofia?” é um exercício reflexivo considerável e, muito dificilmente, encontraremos uma concordância semelhante à presente no discurso científico. Para os filósofos, definir Filosofia é um problema filosófico. Daí já podemos intuir algumas características acerca da natureza da filosofia.

Definição pela etimologia
Geralmente procura-se colher algum progresso da etimologia da palavra. FILOSOFIA é derivada de duas palavras gregas: philia (amor-amizade) e sophia (sabedoria). Seria nada menos do que a busca amorosa do saber. A tradição atribuiu a criação da palavra filosofia a Pitágoras (século VI), matemático e pensador grego. Conta a lenda que Pitágoras foi interrogado sobre sua sabedoria, sendo chamado de sábio (sophos em grego). O matemático respondeu que não era um sophos, mas um philosophos (amigo do saber). Com isso Pitágoras queria demarcar uma diferença considerável entre o possuidor da sabedoria e aquele que a buscava. O sábio não precisa buscar o que já possui, mas o filósofo é somente um amigo que aproxima com curiosidade e respeito do conhecimento e o faz porque não o possui. Uma bonita metáfora referente a essa distinção é colocada por Platão (427-347 a.C.) no seu célebre Banquete, o filósofo, no entender do discípulo de Sócrates não é nem o sábio e nem o ignorante:

Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio – pois já o é –, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios. A ignorância é terrível precisamente por isto: quem não é nem nobre nem sábio acredita ter suficientemente tudo; e naturalmente quem não percebe estar necessitado, não aspira àquilo de que não acredita ter necessidade. (...) Os filósofos são os que estão entre os dois extremos. (...) O Amor é filósofo e, sendo filósofo, está entre o sábio e o ignorante [1]

Poderíamos prosseguir indefinidamente por esse caminho, perguntando agora o que é “amizade” e o que é “sabedoria”. Mas provavelmente não descobriríamos mais sobre a natureza da atividade filosófica com essa digressão. Procuremos então avançar um pouco.

 Natureza da Filosofia
Filosofia é uma atividade crítica e argumentativa iniciada com os gregos do século VI e continuada pela tradição ocidental. Seu objeto é o próprio pensamento e seu método é a discussão crítica das ideias e a análise lógica dos argumentos. O filósofo contemporâneo Nigel Warburton tem um texto introdutório que explicita bem a característica argumentativa da filosofia:

A filosofia é uma atividade: é uma forma de pensar acerca de certas questões. A sua característica mais marcante é o uso de argumentos lógicos. A atividade dos filósofos é, tipicamente, argumentativa: ou inventam argumentos, ou criticam os argumentos de outras pessoas ou fazem as duas coisas. Os filósofos também analisam e clarificam conceitos. [...] Que tipo de coisas discutem os filósofos desta tradição? Muitas vezes, examinam crenças que quase toda a gente aceita acriticamente a maior parte do tempo. Ocupam-se de questões relacionadas com o que podemos chamar vagamente «o sentido da vida»: questões acerca da religião, do bem e do mal, da política, da natureza do mundo exterior, da mente, da ciência, da arte e de muitos outros assuntos. Por exemplo, muitas pessoas vivem as suas vidas sem questionarem as suas crenças fundamentais, tais como a crença de que não se deve matar. Mas por que razão não se deve matar? Que justificação existe para dizer que não se deve matar? Não se deve matar em nenhuma circunstância? E, afinal, que quer dizer a palavra «dever»? Estas são questões filosóficas. Ao examinarmos as nossas crenças, muitas delas revelam fundamentos firmes; mas algumas não. O estudo da filosofia não só nos ajuda a pensar claramente sobre os nossos preconceitos, como ajuda a clarificar de forma precisa aquilo em que acreditamos. Ao longo desse processo desenvolve-se uma capacidade para argumentar de forma coerente sobre um vasto leque de temas -- uma capacidade muito útil que pode ser aplicada em muitas áreas. [2]

Quais são, portanto os problemas filosóficos? Qual a sua natureza? São questões cuja resposta não pode ser obtida a não ser através da razão e da argumentação lógica. Alguns pensadores referem-se às questões filosóficas como questões em aberto, ao contrário de outras questões cuja solução é possível através do recurso à experiência e ao saber técnico-científico. A diferença pode ficar mais visível quando exemplificamos esses dois tipos de questões:
QUESTÕES EMPÍRICAS
QUESTÕES FILOSÓFICAS
           Quais são as partes componentes de uma célula?
           Quantos suicídios ocorreram no Brasil no ano de 2010?
           É possível a vida em outro planeta do sistema solar?
           Qual é o sistema político da Inglaterra?
           É legal dirigir alcoolizado?
           Quantas colunas são necessárias para sustentar uma construção de 20 andares?
           Quais são os mandamentos divinos da tradição católica?
      A vida tem sentido?
          Qual a natureza da realidade?
 Existe livre-arbítrio ou estamos todos determinados?
           O que é política? É possível justificar racionalmente a existência do Estado?
           O que é conhecimento? Como podemos obtê-lo?
           É injusto utilizar animais em pesquisas científicas?
           Deus existe? É possível que Deus exista e nós ainda sejamos livres?
           Há alguma razão para agirmos bem? O que é o bem?

As questões aqui qualificadas como empíricas são aquelas cuja solução é possível através do uso de instrumentos como microscópios, satélites, teorias científicas, pesquisas bibliografias, estatísticas e matemática aplicada. Esses recursos, no entanto, em nada adiantariam para as questões filosóficas. É impossível demonstrar a existência do livre-arbítrio por uma amostragem, ou pretender dizer qual é definitivamente o sentido da vida usando apenas de pesquisa de opinião. É possível mostrar como podemos utilizar ratos de laboratório para testar curas de doenças humanas, mas não é possível descobrir da mesma maneira se uma pesquisa desse tipo é justa com os animais. As questões filosóficas só podem ser respondidas recorrendo à argumentação racional. Isso significa também que os problemas filosóficos estão em aberto e as tentativas de respostas estão sujeitas à crítica.

Implicações para o ensino

Como vimos, ao contrário do que pensa a revista Veja e muitos de seus leitores, a Filosofia não tem nada a ver com doutrinação ideológica, de esquerda ou direita. A disciplina diz respeito à habilidade de questionar criticamente todas as crenças habituais, inclusive as crenças políticas, religiosas e morais. A função da disciplina na educação básica é fornecer elementos para que o aluno não se torne refém de opiniões sem sustentação racional. 

Trata-se de auxiliar o aluno a conceituar, problematizar e teorizar, além de articular seus posicionamentos de forma lógica e coerente. Por meio da filosofia é possível esperar que o aluno desenvolva a leitura, amplie seu mundo com textos de pensadores clássicos, problematize as diversas soluções apresentadas para as questões filosóficas representadas no quadro já retratado e argumente sobre suas próprias opiniões. 

Além das habilidades discursivas, há ganhos atitudinais para o estudante habituado com a atividade filosófica: trata-se do respeito pela opinião alheia e o compromisso com a verdade, que faz com que ele descubra que nem toda crença tem o mesmo valor e, inclusive, a própria opinião deve ser abandonada quando revela-se inconsistente ou quando há um posicionamento mais pertinente. 

Não é papel da educação básica formar filósofos, mas é de se esperar que os elementos de filosofia adquiridos no ensino médio sejam úteis para formar cidadãos conscientes e profissionais reflexivos. Isso serve tanto para o cientista natural que se pergunta pelo método científico correto ou pelos fundamentos de sua ciência (questões claramente filosóficas) quanto para o engenheiro que pondera se os cortes de despesa numa obra incidirão na segurança dos futuros moradores do prédio que constrói. Isso vale para o político que reflete sobre a democracia e sobre o poder, serve para o médico que precisa decidir qual vida salvar numa emergência, serve para o professor pensar sua prática, serve para o consumidor que descobre as falácias do discurso publicitário, serve para o advogado pensar sobre o que é justiça e direito etc.

Serve também para não permanecer calado quando uma revista de circulação nacional insiste em recusar a inclusão de disciplinas fundamentais no currículo do ensino médio com péssimas razões (sinal de que os articulistas tiveram uma formação filosófica deficiente). 



[1] PLATÃO, O banquete. 204a.b [trad. da coleção Os Pensadores, pp. 41-42].         
[2] WARBURTON, Nigel (1998). Elementos básicos de filosofia. Lisboa: Gradiva, páginas 19ss

2 comentários:

  1. Olá, Tiago.
    Cheguei ao seu blog através de um link colocado pelo Marcos Lemos, em um comentário feito por ele a uma espécie de desabafo que eu fiz na rede social Google +. O que eu escrevi lá, de certa forma tem a ver com este menosprezo que muitas pessoas no Brasil mostram com relação à Filosofia, e que a revista Veja assumiu publicamente nesta vergonhosa matéria. É que eu li uma coisa que não gostei, em um determinado blog, destes do tipo que se propõe a dar conselhos, de tal forma a tornar um blog mais popular, para obter assim mais visitantes, seguidores, comentários, e por aí vai. Acontece que, de modo similar à infeliz maneira como a revista Veja fez, o autor do tal blog sugeria, em uma das "dicas", que evitássemos ficar escrevendo sobre temas classificados, segundo ele, como "chatos", e usou como exemplo a Filosofia, pois assim estaríamos restritos a um só determinado grupo. E advertia, dizendo que, cedo ou tarde, estes blogs acabam sendo condenados ao abandono ou esquecidos pelos seus proprietários. Eu tentei deixar pra lá, mas não consegui segurar o que ficou na minha cabeça sobre aquela opinião pessoal, mesmo porque, eu tenho um blog que não é de Filosofia, mas no qual gosto de escrever sobre um tema que também poderia ser considerado “chato”, que é a Física.

    Bom... Agora devo agradecer ao Marcos por ter me proposto esta visita, pois me convenço ainda mais de que ainda há muita vida inteligente na blogosfera brasileira, feita de pessoas que não se importam em ficar tentando banalizar certos assuntos, só pra obter "sucesso". Aliás, teríamos que conhecer o que estas pessoas entendem sobre as várias definições de sucesso. E aí acho que precisaríamos entrar com um pouco de Filosofia.
    Mas será que Reinaldo Azevedo e o nosso amigo conselheiro seriam capazes de fazer este esforço mental? Não creio. No caso do primeiro, penso como disse um comentarista aqui mesmo no seu blog:
    “...analisando o contexto geral (Veja, o Artigo e Brasil), o colunista esconde sua má fé por trás de uma suposta ignorância ”.

    Neste caso, para mim, está evidente que esta má fé tem a ver com política, pois ele culpa sempre os petistas, como se quisessem que a Filosofia fosse usada para que as pessoas percebessem como a Educação foi e está sendo tão mal tratada no Estado de São Paulo, primeiro pelo seu amigo, José Serra, e agora por Geraldo Alckmin.
    Acho que posso falar sobre isso, pois dou aulas em escolas públicas paulistas, há pelo menos vinte anos. Pelo visto, demorou muito pra colocarem Filosofia e Sociologia no currículo.

    Abraço.

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  2. Olá Jairo. Obrigado pela visita e pelo comentário (que é o desabafo de muitos educadores). Deixe o link do seu blog. Sou amante de física e pesquisador de filosofia da ciência, acredito que poderia aprender mais um pouco com vc...
    Abraços,
    Tiago

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