05 maio 2010

Popper, Kuhn, Lakatos e o fim do racionalismo






POPPER, KUHN, LAKATOS E O FIM DO RACIONALISMO[1]
Paul Feyerabend
Popper ecleticamente combinou (1) o pluralismo de Mill e da ciência do final do século dezenove, (2) a consideração de Mill sobre o método hipotético-dedutivo e sua ênfase nos argumentos negativos (cap. 9.13, n. 50) e (3) as objeções que alguns cientistas levantaram contra hipóteses ad hoc que são apenas repetições das objeções anteriores contra qualidades ocultas. A versão não técnica da ‘filosofia’ resultante, descrita por Popper em Conjecturas e Refutações (1962) (cf. também cap. 11.2) e que faz da crítica uma parte importante da ciência, contém observações valorosas, embora dificilmente originais sobre a origem e o crescimento do conhecimento racional. Embora exclusiva na retórica, essa versão não é exclusiva na prática: até ideias dogmáticas podem ser desenvolvidas (e frequentemente tem sido desenvolvidas) da crítica das filosofias mais abertas. ‘Tudo vale’ é uma conseqüência prática óbvia de tal ‘racionalismo crítico’ que Popper costumava introduzir ao dizer que embora fosse um professor de método científico, não podia agir de acordo, pois ‘não há método científico’. Ernst Mach ficaria muito satisfeito com essa colocação (cf. cap. 6, nn. 50-2).
Mas Popper e seus pupilos também desenvolveram e agora defendem uma versão mais técnica. Agora essa versão técnica se transformou num autêntico mal estar. A meta não é mais entender e, talvez, ajudar os cientistas; nem há alguma tentativa de checar a versão por comparação com a prática científica. A meta é desenvolver um ponto de vista especial, trazer esse ponto de vista dentro de uma forma lógica aceitável (o que envolve um considerável amontoado de poucas tecnicalidades sem sentido) e então discutir tudo em seus termos (cf. as observações de Mill sobre tais desenvolvimentos citados e discutidos no vol.1, cap.8). Não a demanda da pesquisa científica por mudança contínua, mas os requerimentos rígidos de um racionalismo abstrato decidem sobre a forma e o conteúdo dos princípios aceitos.
Essas desvantagens são uma conseqüência direta da meta filosófica sublinhada. ‘Epistemologia deve prover um critério geral e estrito que nos permita separar proposições da ciência empírica de proposições metafísicas’ escreve Popper em seu Grundprobleme[2], que precedeu a Lógica da pesquisa científica. Ele toma por certo (a) que a sugerida dicotomia conceitual (entre proposições empíricas e metafísicas) corresponde à real separação entre proposições que são parte das tradições científicas, e (b) que tradições que não sabem da separação ou a contém somente de forma embaçada são melhoradas pela eliminação do embaço. A pesquisa histórica mais recente mostrou que (a) está definitivamente errado: não existe em lugar nenhum um grupo de proposições que são científicas no sentido de Popper e suficientes para gerar resultados pelos quais as ciências são famosas. (b), por outro lado, dificilmente já foi examinado. E ainda um olhar mais próximo sobre crescimento do racionalismo na Grécia, na efetiva comparação da medicina ‘científica’ e várias medicinas populares, na efetiva comparação, em situações especiais, de oráculos e uma ‘discussão racional’ (descrita vividamente por Evans-Pritchard) mostra que esta assunção também é altamente questionável. Não está tão distante da verdade se dissermos, com Wittgenstein, que a aproximação epistemológica implícita na citação acima ergue castelos no ar que pouco têm a ver com coisas que consideramos benéficas e importantes. Um olhar mais próximo sobre a versão técnica confirma totalmente esse diagnóstico.
De acordo com a versão técnica, a ciência procede identificando problemas e resolvendo-os com o auxílio de hipóteses que são (a) relevantes, (b) falsificáveis e (c) mais ricas em conteúdo do que as descrições das quais os problemas surgiram. Encontrada uma hipótese apropriada alguém (d) tenta falsificá-la e opõe-se a toda tentativa de expurgar dificuldades. A falsificação leva ao novo problema de explicar por que a teoria antiga foi bem sucedida onde foi e por que falhou. Esse problema deve novamente ser resolvido de acordo com (a), (b), (c) e (d), i.e. por hipóteses que são mais ricas que ambos problemas e falsificáveis. E assim a ciência avança por conjecturas e refutações desde as regularidades locais até esquemas conceituais compreensivos. Não há garantia de que poderemos sempre ser capazes de resolver os problemas que enfrentamos mas, se fizermos de acordo com (a), (b), (c) e (d), então o progresso é garantido e sabemos também em que ele consiste.
Agora nós podemos considerar de (a) a (d) como dicas úteis para o cientista que pode adotá-las, mas que pode também transgredi-las se sua situação problema demanda isso; por outro lado podemos considerá-las como condições necessárias de uma aproximação racional e, consequentemente, como características invariáveis de todo trabalho científico importante. Popper (cf. suas objeções ao ‘naturalismo’) frequentemente interpretou as condições do segundo modo; popperianos nunca consideraram qualquer outra interpretação[3]. A interpretação é claramente insatisfatória por um número de razões.
A primeira razão é que a troca teórica nem sempre é por falsificação. Exemplos são a Revolução Copernicana e a teoria especial da relatividade. Não há fato refutador, ou conjunto de fatos, que possam explicar a remoção de Ptolomeu, Aristóteles, ou da interpretação literal da Bíblia e não há fato refutador que possa explicar a remoção da teoria dos elétrons de Lorentz, interpretada pelos participantes como necessitária de mudança. O experimento de Michelson que é frequentemente mencionado em conexão com o último caso foi explicado por Lorentz, e de um ‘modo que aumenta o conteúdo’ tal como os popperianos apreciam falar (cap. 10.6). Podemos, é claro, inventar uma interpretação na qual um experimento refuta qualquer outra teoria (assumindo que escolhemos condições limites – uma tarefa não tão simples!) mas somente depois de ocorrido o desenvolvimento que a refutação pretende causar. Comentários similares se aplicam a quaisquer ‘fatos’ que alguém pode querer mobilizar contra o ponto de vista Ptolomaico-Aristotélico (SFS, 49ss.)
A segunda razão é que o ‘significado’ de uma hipótese geralmente torna-se claro somente depois que se completou o processo que a levou a ser eliminada (cf. cap. 10.14). Corvos brancos refutam ‘todos os corvos são negros’. Mas um corvo que foi pintado de branco, ou caiu dentro de um saco de farinha, ou foi descolorido por poluição industrial não conta como um corvo branco (inversamente, um pássaro que foi enegrecido por processos análogos não conta como preto). Um corvo cujo processo metabólico o tornou branco ou cuja composição genética recebeu interferência de modo que o tornasse branco conta como um corvo branco? Assuntos como esses são decididos por estudos sobre variação de cor, i.e. depois de muitos fatos potencialmente refutadores terem sido considerados: o conteúdo de uma teoria que queremos testar e nossa decisão sobre instâncias falsificadoras não são tão independentes quanto uma teoria estrita de falsificação gostaria que fossem. Combinando a demanda por reparar esse conteúdo antes dos testes e independentemente deles com a asserção de que quaisquer desses reparos pertencem ao contexto de descoberta e que o contexto de descoberta pode durar um tempo considerável não resolve a charada, pois agora temos de admitir que teorias são frequentemente abandonadas muito antes de seu contexto de descoberta ter terminado.
Terceira, há muitos casos onde a transição para novas teorias envolve uma mudança de princípios universais (AM, 269) e isso quebra a conexão lógica entre a teoria e o conteúdo de sua predecessora. Isso não assusta cientistas que têm várias maneiras de escolher entre pontos de vista ‘incomensuráveis’ (vol. 1, cap. 1, n.37), mas conflita com a versão técnica (verossimilhança; aumento de conteúdo).
Quarta, conteúdos nem sempre aumentam; eles ocasionalmente encolhem, ou são adaptados de modo ad hoc. Exemplos são a teoria quântica que assume mas não explica estados clássicos de casos e certos métodos de aproximação na teoria geral da relatividade (AM, 63). O surgimento da psicologia científica foi acompanhado pela considerável redução de conteúdo; o mesmo ocorreu com a eliminação das teorias do éter. Alguns popperianos objetam que esses exemplos lidam com proposições teóricas mas isso é para recuarem-se numa filosofia observacional ingênua (SFS, 216).
Quinta, adaptações ad hoc são geralmente o passo certo a dar. Assim, alguns pesquisadores assumiram, no início da história da eletricidade, que ‘cabelo, folhas, galhos e outros debulhos esfregados com âmbar contêm um princípio comum escondido[4][5]. Gilbert, sendo um bom popperiano, ‘achou a ideia tão estúpida para necessitar refutação’. Embora a ideia fosse um passo na direção certa. Comentários similares se aplicam a algumas jogadas de Galileu (AM, 93ss.) e a muitos outros episódios na história da ciência.
Sexta, a demanda de procurar refutações e levá-las a sério leva a um desenvolvimento ordenado somente num mundo no qual instâncias refutadoras são raras e aparecem em largos intervalos, como grandes terremotos. Em tal mundo podemos construir, melhorar, viver em paz com nossas teorias de uma refutação para outra. Mas tudo isso é impossível se teorias são cercadas por um ‘oceano de anomalias’ (cf. vol. 1, cap. 6.1), a não ser que modifiquemos as regras inflexíveis de falsificação, i.e. a não ser que as utilizemos como linhas de direção, ou como ingredientes temporários de racionalidade, não como condições necessárias do procedimento científico.
Sétima, a demanda por aumento contínuo só faz sentido em um mundo infinito tanto quantitativa quanto qualitativamente. Num mundo finito, que contém um número finito de qualidades básicas, ou ‘elementos’, a meta é primeiro encontrar esses elementos e então mostrar como novos fatos podem ser reduzidos a eles com o auxílio de hipóteses ad hoc. Novidade genuína conta como um argumento contra os métodos que a produzem.
Oitava, o aumento de conteúdo e a interpretação realista das ideias que o acarreta podem ser rejeitados por razões éticas ou políticas (esse ponto foi brevemente elaborado na introdução dos vols. 1 e 2). Por exemplo, podemos querer ver humanos como um modelo ‘subjetivo’, usando tanto quanto atribuindo afeição, cuidado, pena, e propriedades ‘profundas’, pertencentes à alma. A demanda por conteúdo crescente somada com a demanda por transformar as teorias mais gerais de certo domínio em medidas da realidade frequentemente conflita com esse desejo. Decidindo por manter a visão subjetiva nós também decidimos contra o realismo e o aumento de conteúdo. Isso, me parece, é o mais poderoso argumento para considerar (a), (b) e (c) acima como direcionamentos no lugar de condições necessárias para a ciência e para o conhecimento em geral.
Kuhn declarou que essa é a maneira como a ciência realmente procede. De acordo com Kuhn a ciência é uma tradição histórica no sentido explicado anteriormente; ela não é sujeita a regras externas, as regras que guiam o cientista não são sempre conhecidas, e elas mudam de um período para outro. Entender um período de ciência é similar a entender um período estilístico na história das artes. Há uma unidade óbvia, mas ela não pode ser sumarizada em poucas regras simples e as regras que guiam essa unidade precisam ser encontradas pelo estudo histórico detalhado (o plano de fundo filosófico é explicado por Wittgenstein; veja cap. 7). A noção geral de tal unidade, ou ‘paradigma’ será consequentemente pobre e colocará um problema no lugar de prover uma solução: o problema de preencher uma estrutura elástica, mas mal definida, com um conteúdo histórico concreto e sempre em mudança. Também será impreciso. Diferentemente das secções de uma tradição teórica que compartilham todas de certos conceitos básicos, secções de tradição histórica são ligadas apenas por vagas similaridades. Filósofos interessados em considerações gerais e ainda demandando precisão e falta de ambuiguidade (como faz Laudan cf. cap. 11.2) estão consequentemente na pista errada; não há proposições gerais e precisas sobre paradigmas. Polanyi e Kuhn fazem a afirmação surpreendente de que até as mais abstratas ciências são tradições históricas nesse sentido.
Lakatos é o único filósofo moderno da ciência da tradição anglo-americana que interpretou o problema do racionalismo como um problema histórico e quem tentou resolve-lo historicamente ao mostrar que todos desenvolvimentos científicos após a revolução copernicana aconteceram por terem certas características abstratas em comum: a ciência é uma tradição abstrata ainda que as abstrações nela contidas já sejam muito tênues e evanescentes. Quão tênues é explicado no cap. 10. Ao tentar estabelecer sua tese, Lakatos localizou algumas importantes características da mudança científica e chegou mais perto da ciência do que qualquer outro filósofo da ciência anterior a ele (ou seja, no século vinte). Mas ele não foi bem sucedido em mostrar que o material que ele examina tem de fato a sublinhada estrutura ‘abstrata’. Seu progresso é em sua intuição histórica parcial, não em penetração filosófica completa. (O mesmo se aplica a Laudan que, embora sua beligerante afirmação de novidade e melhoramento, copiou Kuhn e Lakatos em cada detalhe.) Esses dois escritores criaram a impressão de possuir uma teoria da ciência universalmente válida quando, de fato, só perderam terminologia sem nenhuma regularidade geral para lhe dar substância. Isso, então, é o fim do sonho do século vinte de um racionalismo científico. Uma vez, há muito tempo atrás, a crença em leis gerais da razão levou a maravilhosas descobertas e portanto a um tremendo aumento de conhecimento. O primeiros físicos, astrônomos, matemáticos foram inspirados por essa crença, como o foi a magnífica obra aristotélica. Naqueles tempos, e ainda mais recentemente, durante o surgimento da ciência moderna e suas revisões do século vinte, a Senhora Razão era uma linda, prestativa, embora ocasionalmente autoritária, deusa da pesquisa. Hoje seus pretendentes (ou, deveria melhor dizer, cafetões?) transformaram-na em uma ‘madura’, i.e. falante mas desdentada idosa.

Fonte: FEYERABEND, Paul K. Problems of empiricism. Cambridge: Cambridge University Press, c1981. pp. 21-25.  (Philosophical papers;2)  Tradução de Tiago Luís T. Oliveira.



[1] Nota do tradutor. Esse texto corresponde ao item 6 (cujo título foi traduzido literalmente) do artigo Historical Background: some observations on the decay of the philosophy of science, de Paul K. Feyerabend. Por sua vez o artigo encontra-se no segundo volume da coletânea Philosophical pappers, intitulada Problems of empiricism. Todas as referências do texto que apontam para capítulos e volumes dos Philosophical Pappers foram mantidas para eventual consulta. As referências abreviadas por AM e SFS são respectivamente as obras de Feyerabend intituladas Against Methode (no Brasil a tradução da 3ª edição: Feyerabend, Paul. Contra o método. Trad. Cezar Augusto Mortari. São Paulo: UNESP, 2007.) e Science in a free society (sem versão brasileira).
[2] Die Beiden Grundprobleme der Erkenntnistheorie (Tübingen, 1979), 422
[3] Uma aparente exceção é Lakatos, mas ele não é um Popperiano; cf. cap. 9, n. 57.
[4] N.T. : A tradução literal seria “(...)um princípio comum enterrado (buried)” p.24
[5] Heilbronm, Electricity in the 17th and 18th centuries, 176s.

2 comentários:

  1. Bom dia!
    Gostei muito de seu blog, assim como minha filha, que fazestrado no R.S.
    Como ando lendo e relendo Feyerabend, alguns textos me permitem um "diálogo" mais ampliado, um outro olhar, ja que anda dificil encontara interlocutores nesses aspectos aqui comentados.
    Sou professor em fase de aposentadoria e mudando em breve de BH.
    Como sou um "eterno insatisfeito", busco sempre renovar meus conhecimento, renovando assim as refelexões, e, encontar seu blog foi muito bacana e incentivador. E melhor ainda é saber que mestres da sua categoria estão assumindo o "controle da nave".
    Um abraço do,

    Gladistone Gripp

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  2. Obrigado pela visita. Volte sempre. Minha pesquisa do mestrado é em Feyerabend e, infelizmente, a maioria da literatura não tem tradução para o português. Eu tomei essa iniciativa porque sei que esse texto pode ser uma via de discussão sobre as pretensões da filosofia da ciência, seu papel e seus limites.

    Fica o convite para voltar aqui sempre que puder. Um abraço e obrigado pelo incentivo.

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